AGENDA CULTURAL

9.4.14

Repare bem... Ainda se tortura no Brasil

Hebe Mattos*
Martha Abreu**

A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais … Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. … Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras. (Machado de Assis, Pai contra a Mãe, 1906).

Repare bem é o título do bonito documentário da atriz e cineasta portuguesa Maria de Medeiros sobre Denise Crispim, viúva do jovem guerrilheiro brasileiro Eduardo Leite, o Bacury, morto pela última ditadura brasileira, depois de 109 dias de tortura. 
O documentário foi uma iniciativa do projeto Marcas da Memória da Comissão de Anistia e Reparação do Ministério da Justiça do Brasil. O título e o filme são um bom mote para colocarmos a questão que queremos discutir neste artigo, as iniciativas  e demandas de reparação de males cometidos no passado – e as disputas que suscitam. Afinal escrevemos em pleno aniversário do golpe civil-militar de 1964, de triste memória.
Máscara de folha-de-flandres
Também esta semana, repare bem, foi aprovada pela câmara dos deputados, por expressiva maioria, lei que determina, por dez anos, uma cota de 20% de vagas para pretos e pardos no funcionalismo público. É o racismo como legado da escravidão que está na base da justificativa da nova lei.  É possível reparar o passado?
Como bem nos ensinou Hannah Arendt, as situações de extrema opressão em geral se estabelecem em meio a enormes cumplicidades das sociedades e frequentemente colocam suas vítimas em situações que geram humilhação e vergonha. E esta é, talvez, a maior violência, retirar às vítimas o direito ao passado. Pois para se lidar com um passado de opressão,  é mais confortável falar de honra, orgulho e resistência heroica, e essas virtudes, apesar de existirem, raramente prevalecem integralmente em situações em que estão em jogo a vida e a experiência da dor.
Uma vez passada a situação opressiva, também aqueles que conviveram com o horror sem incomodarem-se com ele, muitas vezes querem esquecer que o fizeram. Calam ou reconstroem suas relações com o passado.

Passaram-se quase 25 anos da Constituição de 1988 para que o Brasil conseguisse falar dos crimes e das cumplicidades na ditatura civil militar com a amplitude que está fazendo agora. É importante que o faça. A explosão de livros sobre o tema dá bem a medida de como a agenda historiográfica se faz  em diálogo direto com a politização das disputas de sentido sobre o passado. As perguntas dos historiadores são sempre alimentadas pela memória. História e Memória não são antagônicas, são formas diferentes e legítimas de se lidar com o passado, para que se possam estabelecer novos consensos sociais sobre o que é intolerável – e o horror não mais se repita.
Não apenas a reflexão sobre o passado recente pode ajudar a conseguir este intento. A nosso ver, no cerne dos crimes do regime instaurado em 1964, estão duas heranças culturais da sociedade brasileira: o elitismo, que faz uma minoria acreditar que “o povo não sabe votar” e a conivência com a tortura, comum a sociedades que conheceram a escravidão como instituição legítima, como bem nos lembrou Machado de Assis. Ela era praticada em quase todas as casas do Brasil oitocentista, de forma corriqueira, contra corpos pretos e pardos.
Nos últimos 30 anos, a pesquisa histórica muito avançou na compreensão da sociedade escravista e sobre o papel essencial dos homens e mulheres escravizados no seu devir. Sabemos como a vida se reinventava a cada dia,  engendrando a cumplicidade dos livres (independentemente da cor) e a resistência dos escravizados (mesmo quando limitados pelo teatro da subserviência). Sabemos também o quanto essas situações eram intercambiantes, fazendo da alforria, um objetivo dos cativos, e do temor da reescravização, um fantasma para os livres de cor. A linguagem racial fazia de escravos e forros, pretos e pardos, e da maioria dos livres, homens e mulheres que se queriam sem cor – e sem memória.

Mas os movimentos negros, finalmente, parecem ter conseguido voz no espaço público para não nos deixar esquecer. No Brasil, a memória da escravidão também está na ordem do dia. Na verdade, políticas de reparação em relação à escravidão atlântica estão em pauta em todo mundo e exigem romper o silêncio sobre os milhares de mortos e desaparecidos antes, durante e depois da travessia do Atlântico e sobre a herança racializada do estigma da escravização.
Também nesse tema, a agenda historiográfica se produz em diálogo com a memória e a politização do passado. Que a polifonia seja bem vinda. Não por acaso, a violência, problemática clássica dos estudos da escravidão, volta à pauta, reexaminada sob novas luzes, abrindo-se a novos debates e interpretações. Neste 31 de março, de muitas vozes e muitas polêmicas, em que a câmara dos deputados acaba de aprovar mais uma lei de ação afirmativa para pretos e pardos, agora no serviço público, fazemos um brinde ao ofício do historiador e à democracia brasileira.
Viva!
* Hebe Mattos é Professora Titular de História do Brasil na Universidade Federal Fluminense e atualmente é professora visitante na Columbia University (Cátedra Ruth Cardoso, 2013-2014).
** Martha Abreu é Professora Associada no Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. É autora entre outros trabalhos dos livros O Império do Divino, Meninas Perdidas e Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologias org com Rachel Soihet.

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