AGENDA CULTURAL

28.6.15

Gume da navalha

Tharso Ferreira*

Publicado no jornal O LIBERAL, 25/6/2015, coluna Academus, caderno ETC

      Pois bem, fui chamado para escrever aqui, convidado por um novato como eu da Academia de letras, por certo ele não me conhece direito, daí o convite. Não tenho papas na língua, intelectual só tem a fala, e a palavra escrita uso como faca, minha lâmina afiada já me custou algumas  prisões e inimigos vorazes, aqueles que quando ouvem verdades enchem os olhos de sangue. Já fui tirado de salas, esquecido por grupos e abandonado por mulheres, mas nunca abandonei o gume de minha navalha e ela, fiel, nunca me abandonou. Tenho que fazer justiça aqui, minhas palavras também já me livraram de poucas e boas, as palavras são santas ditas no momento certo, morre-se e vive-se pela palavra que se solta ao vento.

    Trabalhei em jornais no tempo em que eram feitos no chumbo. Altas madrugadas amarrando linotipos com barbante para serem prensados na calandra, tomando leite com groselha e esperando notícias pelo rádio. Amava os velhos jornalistas, símbolos do nosso futuro com suas máquinas de datilografia que pipocavam com  velocidade em meio aos cantos da coruja. Foi nessas noites com cheiro de chumbo que senti meus primeiros calafrios de decepção com o meu País, que só passei a enxergar observando aqueles mestres todos.

   Em 1973 Lula nem existia, era um operário mínimo sem o dedo mínimo em uma metalúrgica qualquer e fazendo pano de fundo no Sindicato quando foi achado pelos intelectuais de esquerda e o doutrinaram, aprendeu a mexer o doce do socialismo como ninguém. Vocês jovens de hoje, e alguns velhos também, não sabem como é difícil para gente como eu falar mal do Lula, mesmo carregado com as burrices contemporâneas dos políticos ainda acho que o  língua presa fez muita coisa boa para os mínimos deste País.

   Hoje não morro de amores por ele, virou político, e político tem que ser oco, ele já virou um pau oco, ouve, mas não faz mais, sai do outro lado. Mas imagine aí Lula no meu tempo. Era um cara apaixonante, uma jóia para jovenzinhos socialistas como eu, era tudo diferente naqueles dias de chumbo, tudo era novidade, muito diferente da cor preta sem esperanças que temos no horizonte hoje em dia sem um salvador da pátria sequer. Lula era o cara! Os políticos daquela época eram burros, mas inocentes, coronéis com dinheiro para colocar na política. Diferente dos burros de hoje que continuam ficando cada vez mais ricos, pois perderam a inocência e tiram dinheiro de nós sem dó, sem piedade, viraram craques do cinismo absolutista. 

Essa política que está aí não é a política que fazíamos nas caladas madrugais ao som dos Novos Baianos em longas conversas antes dos editoriais de fogo, bebericando leite com groselha com pão e mortadela. Perdemos a mão em algum lugar e foi dar nesta mediocridade que está aí, nesta gente sem valor que tomou nossas assembléias, nosso senado e nosso cenário político. Viramos covardes de carteirinha, e alguns até admiram aqueles  que nos roubam, o primeiro foi Maluf, o deus do “roubo, mas faço”. Perdemos a vergonha, o caráter, pois temos exemplos na cúpula. Os jovens de hoje não tem modelos para admirar. Estamos pobres na música, na política, nos esportes, na literatura. Estamos sem deuses de carne. 

Estamos perdidos, degelando feitos icebergs derretendo dentro do nada. Lula acabou com muitos miseráveis, foram milhões enxotados longe da miséria, mas continuaram miseráveis na cultura, nas letras, no raciocínio. Não sabemos questionar, criticar, duvidar. Não temos caminhos, seguimos o bloco “Maria vai com as outras”, às tontas, estamos perdidos com assuntos narcisistas, agressivos, dependentes. Inventamos palavras, “diabofobia, cristofobia, infantolatria”, para diagnosticar nosso vazio de mundo, fazemos passeata para discutirmos assuntos que deveriam ser superados ou até ignorados, continuamos mais endinheirados, mas mais burros, e um burro com um pouquinho de bolso é um desastre. O Brasil não progride não é por conta da roubalheira, é por conta da burrice. 


*Tharso José Ferreira é escritor e acadêmico da Academia Araçatubense de Letras de Araçatuba-SP

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