AGENDA CULTURAL

28.9.15

O discurso anticapitalista do papa Francisco

Jean-Michel Dumay é jornalista - Le Monde Diplomatique

Francisco descentralizou o olhar da Igreja: defensor de uma ecologia integral socialmente responsável, o papa desafia as consciências.


Diante de uma multidão reunida na Praça do Cristo Redentor, em Santa Cruz, a capital econômica da Bolívia, um homem vestido de branco repreende “a economia que mata”, o “capital transformado em ídolo”, “a ambição sem limites do dinheiro que comanda”. No dia 9 de julho, o chefe da Igreja Católica não se dirigia apenas à América Latina, que o viu nascer, mas ao mundo todo, que ele procura mobilizar para colocar um fim na “ditadura sutil” que exala o mau cheiro do “esterco do diabo”.1

“Precisamos de uma mudança”, proclama o papa Francisco três dias antes de incitar os jovens paraguaios a “desafiar a ordem”. Em 2013 no Brasil, pediu às pessoas que atuassem como “revolucionárias” e se posicionassem “contra a corrente”. Em suas viagens, o bispo de Roma profere um discurso cada vez mais virulento sobre o estado do mundo, sua degradação ambiental e social, e usa expressões fortes contra o neoliberalismo, o tecnocentrismo e um sistema econômico de efeitos nefastos: uniformização de culturas e “globalização da indiferença”.

Em junho, nessa mesma linha, Francisco dirigiu à comunidade internacional um “convite urgente para um novo diálogo, o diálogo pelo qual construiremos o futuro do planeta”. Nessa encíclica sobre a ecologia, chamada Laudato si’ (“Louvado seja”), chama cada um, fiel ou não, para uma revolução de comportamentos e denuncia um “sistema de relações comerciais e de propriedade estruturalmente perverso”.

O pontífice assegura que outro mundo é possível, não no Juízo Final, mas aqui embaixo e agora. O papa celebridade, na linha midiática de João Paulo II (1978-2005), fragmenta e divide: por um lado é canonizado por figuras da ecologia e altermundialistas (Naomi Klein, Nicolas Hulot, Edgar Morin) por “sacralizar o desafio ecológico” em um “deserto do pensamento”;2 por outro, demonizado pelos ultraliberais e pelos céticos em relação à questão climática, capazes de descrevê-lo como “a pessoa mais perigosa do mundo” – como o caricaturou um polemista do canal ultraconservador norte-americano Fox News.

As direitas cristãs se inquietam ao ver um papa de discurso esquerdista e reticente sobre o aborto. E os editorialistas da esquerda laica se perguntam sobre a profundidade revolucionária desse homem do Sul, primeiro papa não europeu desde o sírio Gregório III (731-741), que se escandaliza diante do tráfico de imigrantes, pede apoio aos gregos e rejeita o plano de austeridade, nomeia um genocídio (dos armênios) de “genocídio”, assina um quase acordo com o Estado palestino, apoia sua testa em oração no Muro das Lamentações contra a separação que os israelenses impõem aos palestinos e se aproxima de Vladimir Putin sobre a questão síria quando a tendência, entre os ocidentais, é sancionar a Rússia pelo conflito ucraniano.

“Ele colocou a Igreja novamente no cenário internacional”, analisa Pierre de Charentenay, especialista em Relações Internacionais na revista jesuíta romana Civiltà Cattolica. “E mudou a aparência da instituição. Ele é o campeão do altermundialismo e questiona o conjunto do sistema.”

Precisamente, o que diz o primeiro papa jesuíta e sul-americano é o seguinte: a humanidade carrega a responsabilidade pela degradação planetária e deixa o sistema capitalista neoliberal destruir o planeta, “nossa casa comum”, semeando desigualdade. A humanidade precisa romper com uma economia – como diz o economista, e também jesuíta, Gaël Giraud – “que desde Adam Smith e David Ricardo exclui a questão ética, impondo a ficção da mão invisível” que deveria regular o mercado. Essa mão precisa, atualmente, de uma “autoridade mundial”, de normas restritivas e, sobretudo, da inteligência dos povos a serviço de quem é urgente redirecionar a economia. Porque a solução, política, está em suas mãos, e não nas mãos das elites, acometidas pela “miopia das lógicas de poder”.

Para o papa, a crise ambiental é, antes, moral, fruto de uma economia desligada do ser humano, na qual as dívidas se acumulam: entre ricos e pobres, Norte e Sul, jovens e velhos. E na qual “tudo está conectado”: pobreza-exclusão e cultura do desperdício, ditadura do curto prazo e alienação consumista, aquecimento global e congelamento de corações. Dessa forma, “uma abordagem ecológica verdadeira sempre se transformará em abordagem social”. Convocada a se repensar, a humanidade precisa buscar uma “nova ética nas relações internacionais” e uma “solidariedade universal” – é o que pedirá Francisco na Assembleia Geral da ONU no dia 25 de setembro, no lançamento dos Objetivos do Milênio para o Desenvolvimento.

Sem dúvida, nada disso é novo. “Francisco se insere como uma bonita continuidade na linha do Concílio do Vaticano II [aquele ocorrido entre 1962 e 1965, cujo objetivo era abrir a Igreja ao mundo moderno]”, constata Michel Roy, secretário-geral da rede humanitária Caritas Internacional. Assim, o pontífice revisita a doutrina social da Igreja elaborada na era industrial e alinha suas convicções às de Paulo VI (1963-1978), primeiro papa das grandes viagens intercontinentais. Depois da reforma de João XXIII (1958-1963), foi ele quem fisicamente saiu primeiro do papado da Itália, internacionalizou o colégio dos cardeais, multiplicou as nunciaturas (embaixadas da Santa Sé) e as relações bilaterais com os Estados.3 Também foi Paulo VI quem levou a Igreja para além de suas competências restritas de guardiã das liberdades religiosas e tornou-a “solidária com as angústias e penas de toda a humanidade”.4 Para ele, desenvolvimento era o novo nome da paz; uma paz entendida não como um estado, mas como o processo dinâmico de uma sociedade mais humana pelo compartilhamento da riqueza.

Contudo, se por um lado existe essa continuidade – para alguns, inclusive, ela representa o ápice da aposta católica empreendida nos anos 1960 –, por outro é difícil ignorar que o pontífice argentino vai além de seus predecessores. Apesar de o polonês João Paulo II e o alemão Bento XVI não economizarem no discurso antiliberal, eles ficaram marcados pelo rigor doutrinal. O último foi acometido também por alguns “contratempos” que a administração do Vaticano teve certa dificuldade em contornar, como o caso VatiLeaks: a difusão de documentos confidenciais que acusavam a Santa Sé de corrupção e favorecimento ilícito, notadamente em contratos assinados com empresas italianas.

Há duas opiniões sobre as razões da renovação atual: uma delas defende que se trata do contexto, e a outra, de que se devem a características inerentes ao homem. “No plano ético-político, Francisco preenche um vazio em nível internacional”, constata François Mabille, professor de Ciência Política na Federação Universitária e Politécnica de Lille e especialista em diplomacia pontifical. Ele é o papa pós-crise financeira de 2008, como João Paulo II foi o do fim do comunismo. “Ao realizar um aggiornamento da doutrina social, Francisco introduz o pensamento sistêmico na Igreja, segundo o qual todos os fatores sociais estão relacionados. Além disso, ocupa com sucesso o lugar da reivindicação de protesto”, analisa Mabille. E acrescenta: “Ele tem senso de urgência. O tempo da Igreja já não era o tempo do mundo. Tudo ia muito rápido para Bento XVI. Francisco sentiu a necessidade de a Igreja estar no passo da emancipação, e não mais da reação”.

Antes de ganhar o mundo, contudo, Francisco estremeceu a própria casa. Adepto de uma sobriedade que compartilha com Francisco de Assis, de quem emprestou o nome, instaurou um papado preocupado com o exemplo. Renunciou a atributos de vestimentas e hábitos honoríficos e foi viver em um quarto e sala de 70 m², em vez dos luxuosos apartamentos pontificais. O papa deseja atingir o campo simbólico e, para isso, não se restringe à palavra: empreende gestos concretos – o que tem seu peso em uma sociedade pautada pela imagem.

Dessa forma, como um bom samaritano, aparece sempre direto, espontâneo, cara a cara. Designado por seus pares para reformar em profundidade a Cúria, ou seja, o aparelho estatal da Santa Sé, Francisco fez uma lista de quinze males que acometem a instituição, marcada por um clientelismo à moda italiana. Entre os itens, o “Alzheimer espiritual” e, em primeiro lugar, o hábito de “acreditar-se indispensável”.5

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