Jean-Michel Dumay é jornalista - Le Monde Diplomatique
Francisco descentralizou o olhar da Igreja: defensor de uma ecologia integral socialmente responsável, o papa desafia as consciências.
Diante de uma multidão reunida na Praça do Cristo Redentor,
em Santa Cruz, a capital econômica da Bolívia, um homem vestido de branco
repreende “a economia que mata”, o “capital transformado em ídolo”, “a ambição
sem limites do dinheiro que comanda”. No dia 9 de julho, o chefe da Igreja
Católica não se dirigia apenas à América Latina, que o viu nascer, mas ao mundo
todo, que ele procura mobilizar para colocar um fim na “ditadura sutil” que
exala o mau cheiro do “esterco do diabo”.1
“Precisamos de uma mudança”, proclama o papa Francisco três
dias antes de incitar os jovens paraguaios a “desafiar a ordem”. Em 2013 no Brasil,
pediu às pessoas que atuassem como “revolucionárias” e se posicionassem “contra
a corrente”. Em suas viagens, o bispo de Roma profere um discurso cada vez mais
virulento sobre o estado do mundo, sua degradação ambiental e social, e usa
expressões fortes contra o neoliberalismo, o tecnocentrismo e um sistema
econômico de efeitos nefastos: uniformização de culturas e “globalização da
indiferença”.
Em junho, nessa mesma linha, Francisco dirigiu à comunidade
internacional um “convite urgente para um novo diálogo, o diálogo pelo qual
construiremos o futuro do planeta”. Nessa encíclica sobre a ecologia, chamada
Laudato si’ (“Louvado seja”), chama cada um, fiel ou não, para uma revolução de
comportamentos e denuncia um “sistema de relações comerciais e de propriedade
estruturalmente perverso”.
O pontífice assegura que outro mundo é possível, não no
Juízo Final, mas aqui embaixo e agora. O papa celebridade, na linha midiática
de João Paulo II (1978-2005), fragmenta e divide: por um lado é canonizado por
figuras da ecologia e altermundialistas (Naomi Klein, Nicolas Hulot, Edgar
Morin) por “sacralizar o desafio ecológico” em um “deserto do pensamento”;2 por
outro, demonizado pelos ultraliberais e pelos céticos em relação à questão
climática, capazes de descrevê-lo como “a pessoa mais perigosa do mundo” – como
o caricaturou um polemista do canal ultraconservador norte-americano Fox News.
As direitas cristãs se inquietam ao ver um papa de discurso
esquerdista e reticente sobre o aborto. E os editorialistas da esquerda laica
se perguntam sobre a profundidade revolucionária desse homem do Sul, primeiro
papa não europeu desde o sírio Gregório III (731-741), que se escandaliza
diante do tráfico de imigrantes, pede apoio aos gregos e rejeita o plano de
austeridade, nomeia um genocídio (dos armênios) de “genocídio”, assina um quase
acordo com o Estado palestino, apoia sua testa em oração no Muro das
Lamentações contra a separação que os israelenses impõem aos palestinos e se
aproxima de Vladimir Putin sobre a questão síria quando a tendência, entre os
ocidentais, é sancionar a Rússia pelo conflito ucraniano.
“Ele colocou a Igreja novamente no cenário internacional”,
analisa Pierre de Charentenay, especialista em Relações Internacionais na
revista jesuíta romana Civiltà Cattolica. “E mudou a aparência da instituição.
Ele é o campeão do altermundialismo e questiona o conjunto do sistema.”
Precisamente, o que diz o primeiro papa jesuíta e
sul-americano é o seguinte: a humanidade carrega a responsabilidade pela
degradação planetária e deixa o sistema capitalista neoliberal destruir o
planeta, “nossa casa comum”, semeando desigualdade. A humanidade precisa romper
com uma economia – como diz o economista, e também jesuíta, Gaël Giraud – “que
desde Adam Smith e David Ricardo exclui a questão ética, impondo a ficção da
mão invisível” que deveria regular o mercado. Essa mão precisa, atualmente, de
uma “autoridade mundial”, de normas restritivas e, sobretudo, da inteligência
dos povos a serviço de quem é urgente redirecionar a economia. Porque a
solução, política, está em suas mãos, e não nas mãos das elites, acometidas
pela “miopia das lógicas de poder”.
Para o papa, a crise ambiental é, antes, moral, fruto de uma
economia desligada do ser humano, na qual as dívidas se acumulam: entre ricos e
pobres, Norte e Sul, jovens e velhos. E na qual “tudo está conectado”:
pobreza-exclusão e cultura do desperdício, ditadura do curto prazo e alienação
consumista, aquecimento global e congelamento de corações. Dessa forma, “uma
abordagem ecológica verdadeira sempre se transformará em abordagem social”.
Convocada a se repensar, a humanidade precisa buscar uma “nova ética nas
relações internacionais” e uma “solidariedade universal” – é o que pedirá
Francisco na Assembleia Geral da ONU no dia 25 de setembro, no lançamento dos
Objetivos do Milênio para o Desenvolvimento.
Sem dúvida, nada disso é novo. “Francisco se insere como uma
bonita continuidade na linha do Concílio do Vaticano II [aquele ocorrido entre
1962 e 1965, cujo objetivo era abrir a Igreja ao mundo moderno]”, constata
Michel Roy, secretário-geral da rede humanitária Caritas Internacional. Assim,
o pontífice revisita a doutrina social da Igreja elaborada na era industrial e
alinha suas convicções às de Paulo VI (1963-1978), primeiro papa das grandes
viagens intercontinentais. Depois da reforma de João XXIII (1958-1963), foi ele
quem fisicamente saiu primeiro do papado da Itália, internacionalizou o colégio
dos cardeais, multiplicou as nunciaturas (embaixadas da Santa Sé) e as relações
bilaterais com os Estados.3 Também foi Paulo VI quem levou a Igreja para além
de suas competências restritas de guardiã das liberdades religiosas e tornou-a
“solidária com as angústias e penas de toda a humanidade”.4 Para ele,
desenvolvimento era o novo nome da paz; uma paz entendida não como um estado,
mas como o processo dinâmico de uma sociedade mais humana pelo compartilhamento
da riqueza.
Contudo, se por um lado existe essa continuidade – para
alguns, inclusive, ela representa o ápice da aposta católica empreendida nos
anos 1960 –, por outro é difícil ignorar que o pontífice argentino vai além de
seus predecessores. Apesar de o polonês João Paulo II e o alemão Bento XVI não
economizarem no discurso antiliberal, eles ficaram marcados pelo rigor doutrinal.
O último foi acometido também por alguns “contratempos” que a administração do
Vaticano teve certa dificuldade em contornar, como o caso VatiLeaks: a difusão
de documentos confidenciais que acusavam a Santa Sé de corrupção e
favorecimento ilícito, notadamente em contratos assinados com empresas
italianas.
Há duas opiniões sobre as razões da renovação atual: uma
delas defende que se trata do contexto, e a outra, de que se devem a
características inerentes ao homem. “No plano ético-político, Francisco
preenche um vazio em nível internacional”, constata François Mabille, professor
de Ciência Política na Federação Universitária e Politécnica de Lille e
especialista em diplomacia pontifical. Ele é o papa pós-crise financeira de
2008, como João Paulo II foi o do fim do comunismo. “Ao realizar um
aggiornamento da doutrina social, Francisco introduz o pensamento sistêmico na
Igreja, segundo o qual todos os fatores sociais estão relacionados. Além disso,
ocupa com sucesso o lugar da reivindicação de protesto”, analisa Mabille. E
acrescenta: “Ele tem senso de urgência. O tempo da Igreja já não era o tempo do
mundo. Tudo ia muito rápido para Bento XVI. Francisco sentiu a necessidade de a
Igreja estar no passo da emancipação, e não mais da reação”.
Antes de ganhar o mundo, contudo, Francisco estremeceu a
própria casa. Adepto de uma sobriedade que compartilha com Francisco de Assis,
de quem emprestou o nome, instaurou um papado preocupado com o exemplo.
Renunciou a atributos de vestimentas e hábitos honoríficos e foi viver em um
quarto e sala de 70 m², em vez dos luxuosos apartamentos pontificais. O papa
deseja atingir o campo simbólico e, para isso, não se restringe à palavra:
empreende gestos concretos – o que tem seu peso em uma sociedade pautada pela
imagem.
Dessa forma, como um bom samaritano, aparece sempre direto,
espontâneo, cara a cara. Designado por seus pares para reformar em profundidade
a Cúria, ou seja, o aparelho estatal da Santa Sé, Francisco fez uma lista de
quinze males que acometem a instituição, marcada por um clientelismo à moda
italiana. Entre os itens, o “Alzheimer espiritual” e, em primeiro lugar, o
hábito de “acreditar-se indispensável”.5
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