TAG é uma espécie de clube do livro, Editora Globo, Porto Alegre. Paga-se mensalmente para receber um livro e alguns adereços. Depois daquela propaganda passar por mim no Facebook milhões de vezes, eu gritei:
Há algum tempo, li O xará. Lembro de uma noite à beira do fogo em Gramado, num inverno de anos atrás, e de como fiquei comovida. Reli o livro para escrever este texto e alguma coisa aconteceu (a vida mesma, creio...), pois a emoção de outrora transformou-se num pranto meio incontrolável na beira da praia no feriado que abriu o mês de fevereiro.
Gosto muito da Jhumpa Lahiri. Acho que a literatura tem a função maravilhosa (e imprescindível) de aproximar os seres humanos de realidades distantes da sua - entramos, em O xará, nas fímbrias mais profundas da vida de uma família indiana vivendo seus medos, seus estranhamentos com a América, sua saudade inquebrantável da família, do país natal, dos costumes arraigados na alma. Eu sou de origem polonesa, nascida em Porto Alegre, mas ainda lembro da estranheza de ver meu avô, que morreu (bem-sucedido na sempre estranha - para ele - América do Sul) sem aprender fluentemente o português. Lembro de como eu o achava curioso, esquisito às vezes, diferente dos outros de uma forma que quase me parecia mágica e que fez dele o meu primeiro personagem. Mas lembro, também, de como, nos recreios escolares, quando eu levava pierogi de lanche (pierogi é um pastel cozido tradicional da cozinha polonesa), incomodavam-me as caras de espanto dos meus colegas de aula. Naqueles recreios, eu me sentia profundamente próxima do meu avô - éramos, ambos, partes de uma mesma história.
O tempo passou e escrevi sobre isso em alguns romances - provavelmente não com a maestria de Lahiri. Neste livro, sempre narrado no presente, vivemos a vida de Ashima e de Ashoke, e acompanhamos o nascimento e a vida de Gógol - e também, com algum distanciamento, de sua irmã, Sonia. Estados Unidos e Índia brigam e dançam e copulam nesta história - que é, mais do que tudo, uma história de amor familiar, de identidade e de estranhamento. Um livro que chega aos leitores da TAG num momento importante da política mundial, talvez, em tempos próximos, uma Ashima acabe mesmo dando à luz em Calcutá, e não no interior dos Estados Unidos.
Mas voltando à beleza deste romance, O xará é também (e é muito) um livro sobre a vida e os seus movimentos de expansão e contração, porque tudo vai e volta, cresce e diminui para tornar a crescer novamente, num incansável círculo eterno, como um pulmão respirando, como um coração batendo até, por fim, silenciar. Um livro sobre ser estrangeiro, sobre heranças familiares e sobre pertencimento. Como uma vida faz outra vida, um filho, muito provavelmente, virá a desprezar o passado dos seus pais, afastando-se dele porque precisa construir-se a si próprio. Mas, em algum momento, perto ou longe, este afastamento encontrará seu inexorável caminho de volta, de reencontro - somos todos iguais, somos todos incompreendidos, somos todos estrangeiros na vida uns dos outros, mas a gente só descobre isso depois de viajar muito pelos anos.
- Chega! Eu me rendo! Vocês, marqueteiros, não vão me deixar de consciência pesada por ser um leitor e não aderir!
Assim já li o primeiro: O Xará, gostei muito e reproduzo aqui a apreciação de dois escritores brasileiros sobre o livro. Já chegou o segundo (Hélio Consolaro)..
SOMOS TODOS ESTRANGEIROS
Gosto muito da Jhumpa Lahiri. Acho que a literatura tem a função maravilhosa (e imprescindível) de aproximar os seres humanos de realidades distantes da sua - entramos, em O xará, nas fímbrias mais profundas da vida de uma família indiana vivendo seus medos, seus estranhamentos com a América, sua saudade inquebrantável da família, do país natal, dos costumes arraigados na alma. Eu sou de origem polonesa, nascida em Porto Alegre, mas ainda lembro da estranheza de ver meu avô, que morreu (bem-sucedido na sempre estranha - para ele - América do Sul) sem aprender fluentemente o português. Lembro de como eu o achava curioso, esquisito às vezes, diferente dos outros de uma forma que quase me parecia mágica e que fez dele o meu primeiro personagem. Mas lembro, também, de como, nos recreios escolares, quando eu levava pierogi de lanche (pierogi é um pastel cozido tradicional da cozinha polonesa), incomodavam-me as caras de espanto dos meus colegas de aula. Naqueles recreios, eu me sentia profundamente próxima do meu avô - éramos, ambos, partes de uma mesma história.
O tempo passou e escrevi sobre isso em alguns romances - provavelmente não com a maestria de Lahiri. Neste livro, sempre narrado no presente, vivemos a vida de Ashima e de Ashoke, e acompanhamos o nascimento e a vida de Gógol - e também, com algum distanciamento, de sua irmã, Sonia. Estados Unidos e Índia brigam e dançam e copulam nesta história - que é, mais do que tudo, uma história de amor familiar, de identidade e de estranhamento. Um livro que chega aos leitores da TAG num momento importante da política mundial, talvez, em tempos próximos, uma Ashima acabe mesmo dando à luz em Calcutá, e não no interior dos Estados Unidos.
Mas voltando à beleza deste romance, O xará é também (e é muito) um livro sobre a vida e os seus movimentos de expansão e contração, porque tudo vai e volta, cresce e diminui para tornar a crescer novamente, num incansável círculo eterno, como um pulmão respirando, como um coração batendo até, por fim, silenciar. Um livro sobre ser estrangeiro, sobre heranças familiares e sobre pertencimento. Como uma vida faz outra vida, um filho, muito provavelmente, virá a desprezar o passado dos seus pais, afastando-se dele porque precisa construir-se a si próprio. Mas, em algum momento, perto ou longe, este afastamento encontrará seu inexorável caminho de volta, de reencontro - somos todos iguais, somos todos incompreendidos, somos todos estrangeiros na vida uns dos outros, mas a gente só descobre isso depois de viajar muito pelos anos.
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Nikolai Gógol, o escritor russo |
O DANADO DO GÓGOL
Compreender o papel que O capote, do russo Nikolai Gógol, desempenha na dinâmica narrativa de O xará é o grande desafio que fica ressoando após a leitura do romance de Jhumpa Lahiri. No mais, a prosa realista da escritora deixa tudo às claras, bem transparente – mesmo que às custas de alguma superficialidade. Mas o danado do Gógol...
A questão do nome, escancarada já no título, é um elo óbvio. Mesmo que o patético Akaki Akakiévitch de O capote não tivesse sido nomeado com dificuldade pela mãe, como foi também o pequeno Gógol, restaria o fato de que este é um nome absurdo para um americano de origem bengali.
Na verdade, trata-se de uma travessura que o jovem casal indiano se permite ao ter seu primeiro filho, fugindo da tradição e ao mesmo tempo tentando enviesadamente preservá-la diante das regras impostas pela cultura americana que acaba de adotar.
O nome deveria ser usado apenas em casa, uma espécie de apelido familiar diferente do “nome bom”, oficial – traço da cultura bengali que guarda uma vaga correspondência com o jeito russo de nomear pessoas. Não dá certo. O menino vira Gógol mesmo.
Expressando uma paixão literária do pai, sacramentada num bonito episódio de quase morte, o problema é que o nome esquisito não expressa o filho. Pelo contrário: o menino o odeia. Faz questão de nunca ler o grande autor russo, nem na escola nem em casa, apesar de ganhar um luxuoso volume em capa dura do pai.
É evidente a implicação metafórica dessa crise de identidade – ou de identificação. Mesmo depois que muda legalmente seu nome para Nikhil, Gógol permanece desconfortável na própria pele. É americano, mas não é visto assim pelos americanos brancos. Tem origem indiana, mas as viagens que faz a Calcutá com os pais são uma tortura. Não está nem aqui nem lá – pudera, seu primeiro nome é um sobrenome russo! Adulto, sua vida amorosa vai refletir esse desajuste.
A novidade é pequena até aí. Essa costuma ser a sina dos filhos de imigrantes, e a literatura “pós-colonial” que faz sucesso nas últimas décadas – em especial no mercado de língua inglesa – está cheia de variações sobre o tema. A contribuição de Jhumpa Lahiri é embrulhar uma história singela de inspiração autobiográfica, sem grandes arroubos dramáticos, em uma prosa fluida, sensível e tão carregada de detalhes sensoriais quanto um prato indiano é carregado de condimentos.
Falta densidade à maior parte dos personagens, que tendem ao bidimensional (nenhum deles mais do que Sonia, a irmã de Gógol), mas o leitor que torce pela felicidade do rapaz pode nem se dar conta disso, embalado por um realismo esteticamente conservador, mas competente, que não hesita sequer em abraçar o velho narrador onisciente em terceira pessoa.
Falta densidade à maior parte dos personagens, que tendem ao bidimensional (nenhum deles mais do que Sonia, a irmã de Gógol), mas o leitor que torce pela felicidade do rapaz pode nem se dar conta disso, embalado por um realismo esteticamente conservador, mas competente, que não hesita sequer em abraçar o velho narrador onisciente em terceira pessoa.
E há, claro, um tal de O capote. Sem a forte sugestão de intertextualidade que atravessa o romance, O xará talvez pudesse ser posto de lado como uma narrativa pós-colonial rotineira. A janela que areja e despenteia seu realismo bonitinho é escancarada no final, quando Gógol enfim começa a ler seu xará, praticamente obrigando o leitor a fazer o mesmo e emendar uma história na outra. (Ainda bem que a TAG pensou nisso e providenciou uma edição do conto, não?)
Não é uma emenda fácil. O que um escritor russo desvairadamente cômico, autor de uma cruel história de fantasma encharcada de crítica social, tem a ver com Jhumpa Lahiri e sua ânsia cândida – e desprovida de humor – de retratar sua própria realidade? À moda de Shakespeare, poderíamos perguntar: o que é um nome? Ou ainda: o que é nomear as coisas, o que é escrever?
Façam suas apostas.
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