AGENDA CULTURAL

29.9.17

Moléstia sem cura



Tharso Ferreira*

   Ontem meu coração bateu feliz terminei um livro grande, um romance que dei o nome de "Atacabuça, Beatles e Quintais". Para mim um feito inimaginável. Eu buscava por algo assim desde que fui tomado por esta moléstia densa, degenerativa e sem cura que piora em mim a cada dia e que me deixa isolado por meses: a literatura. Uma doença que não tem remédio, cujo tratamento consiste em se sentar silenciosamente e escrever o tempo todo como um paraplégico dependente enquanto os pensamentos saltam por toda parte; frágeis como beija-flores, aparecem e fogem. Um vento permanente contrário às leis naturais que afasta amigos implode casamentos e isola mundos que às vezes é água, às vezes é ferro, às vezes apenas areia que faço esparramar em uma folha branca as letras que me procuram como que tocadas por um espírito de estrelada alegria.

   Da minha vida de escrever muito e viver de menos se foi embora quase tudo; filhos de ar enfastiado, esposas desconcertadas que não suportaram minha moléstia sem cura que impregnava a casa inteira e não aturaram meu vicio absoluto com meus silêncios confidenciais de meses moribundos em derredor de minhas folhas pálidas, quase mortas, exigindo minhas estocadas de caneta para preenchê-las com contos, prosas, versos, poesias, crônicas, artigos. Sou assim e sei que não tenho remédio sentado defronte minha janela na claridade do sol ou no prateado da lua, porque preciso de solidão para bicar aqui e ali, único modo de me aliviar desse mal que me faz tão bem. Solidão que mata meu desejo e minha sina de viver sem amor, pois me bastam os carinhos dos livros. Vivo orgulhoso tragado pela literatura como a pedra é tragada pelas águas.

   "Atacabuça, Beatles e Quintais" que acabo de escrever me fez galopar sem medo no meio das poeiras de meu passado onde aparece claramente a pólvora e o cimento no buquê de trinta e dois episódios no qual eu sou o cavaleiro ensimesmado nessa estrada que cabe só eu. Onde coloquei tudo, onde chorei junto me vendo diante da cobiça dos homens e da turbulência da minha vida oca. Saiu um romance rasgado de dolorosa melodia, vivo, vingativo, poético e político, onde guardei as palpitações de todo o terreno de minha vida numa poesia nutrida com os claros alimentos da terra, do ar que respirei, do fogo que queimou minha alma e me elevaram em espírito sem a necessidade de meus velhos tambores de couro.

   Basta! Disse minha mulher angustiada. "Atacabuça, Beatles e Quintais" nos separou de vez. Porque você necessita de tão impertinente interpretação? Vives rodeado de livros escritos e por escrever e esquece-se das evidências de nosso mundo, nós só assistimos tua liberdade e tranquilidade, mas sepulta teu próprio lar e se sustenta em tua própria solidão, a vida não é só literatura, uma mulher quer mais palpitações em seu casamento. 

Respondi-lhe narciso, que não sabia que sofria com minhas façanhas literárias que me prendiam por fios mágicos que me permitiam conversas obscuras e que me sentia como os peixes de grandes profundidades que vivem nos abismos dos oceanos e outras vezes nas asas ardentemente livres de uma mariposa das selvas mais distantes e que meu coração não era cinza e que não ignorava o clarão de sua generosa convivência e que ela me fortalecia os dias e lhe agradeci pela sua força de mulher aguerrida e perdão por lhe ter causado mal e deixado que as forças do casamento sempre inconcluso ficassem pífias. Falei das abundâncias da literatura, de como ela corre no meu sangue e de como ela me faz perder o passo com suas sílabas reluzentes e que era minha paixão e que foi através dela que compreendi o amor. Nada adiantou, o pontapé final esfarelou tudo. Mulheres odeiam homens que amam mais a si do que a elas. Estou fadado à solidão, martirizado sobre a terra, abraçado com meus fermentos Edgar Allan Poe, Pablo Neruda, Cecília Meireles, Cora Coralina, Shakespeare, Lygia Fagundes Telles, Kalil Gibran, Mario Vargas Llosa, Lima Barreto porque escritores podem cavalgar, escritores podem voar, porque escritores sentem antes de todo mundo a dor que lhe assaltará. Escritores são formosos, são canalhas, são dementes, canastrões, machões, afeminados, pederastas, governadores, poetas, estadistas, crianças, velhos, mulheres, bandoleiros. Escritor pode tudo sem ser nada.

   Em "Atacabuça, Beatles e Quintais" uma narrativa misturada à história verdadeira começa por apregoar que sou um covarde é um dever que tenho comigo ao me olhar melancolicamente e saber que fumaças não voltam mais do céu, então fiz de acontecimentos minúsculos de minha vida uma obra ritualística, desenfreei minha loucura com ternura para registrar meus tempos de menino que herdaria a graça de se ser um escritor, pois as jazidas da minha vida me encheram as mãos para que eu fosse um embusteiro, um falastrão, fingidor, mentiroso. A estrada da minha vida é tão estreita, tão cheia de pedregulhos, tão cruel e seca, tão nada que cavei na ponta da tinta molhada de minha caneta outra vida para que eu pudesse lançar chispas de fogo à vontade, esnobar a morte e rir da velhice. Lá eu me invento, sou astuto, me transmudo, é como que a minha vida real de miseráveis linhas nunca tivesse existido. Lá eu posso ser amigo do rei, amado pela princesa, ter dinheiro que não acaba mais, obrigar as pessoas a ouvirem as canções que quero. E lhe digo que diante de minhas páginas brancas armado com uma caneta a mulher que dorme comigo não negaria meu conto e meu canto, seria eterna em meus pensamentos e jamais me abandonaria. 
                                                        *Tharso José Ferreira é escritor e ocupa uma cadeira na Academia de Letras.

Um comentário:

Prof. Carlos Selis disse...

Meu nobre e querido amigo Tharso... Me sinto muito honrado em ter vc como aluno e acompanhar de perto seu sucesso... Um forte abraço!