AGENDA CULTURAL

14.12.17

Apesar de preto, o Papai Noel era o Bom Velhinho


Hélio Consolaro*

Na minha cidade, caro leitor, Araçatuba, houve no Natal de 2010 Papai Noel preto. Havia comerciantes que faziam tal atrevimento. Eu ia escrever afrodescendente, mas na rua todo mundo via e dizia:

- Mãe, olha lá, Papai Noel preto!
  
Não estou falando do pai negro que é chamado pelos filhos de Papai Noel. Refiro-me ao profissional que se fantasiava com a roupa do "Bom Velhinho" e prestava serviços às lojas para chamar a criançada. O nome dele era Mauro César Celestino, havia sido guarda municipal.
 
O leitor pode se espantar e perguntar:

- Se a figura importada da Lapônia é branca, por que fantasiar um negro de Papai Noel?

Isso é uma adaptação teatral (aculturação) de uma figura estrangeira, importada à cultura dessa América Latina, cujos portugueses trouxeram uma multidão de escravos negros.

Se não houver Papel Noel negro, as crianças negras ficam excluídas, só vendo Papai Noel polaco, pensando que seu papai nunca pode ser Noel porque é afrodescendente. Variar as raças da cara do Bom Velhinho (pode ser japonês) é uma atitude de acolhimento a dizer: "somos todos irmãos, não importa as diferenças".

Mais de 50% da população brasileira é afrodescendente, ainda há uma significativa parte que são pretos mesmos, portanto essa parte se sente alheia ao Natal por imposição cultural. Para nós, brancos, nem percebemos isso, mas para os negros isso deve doer lá dentro. Qual seria a cor de Jesus Cristo? Outra pergunta que nos incomoda.

Mauro César ficava transitando defronte ao lugar de trabalho. O lojista que o contratou, com certeza, quis fazer marketing. E deu certo. Não havia quem não olhasse para a loja.

Como sempre eu carregava uma câmera digital em minha bolsa, pois os celulares não tinham se transformado em máquinas fotográficas,  solicitei para alguém registrar a minha foto com meu neto e o "Bom Velhinho", pois  na internet, naquela época, não achei nenhum Papai Noel afrodescendente.

Ao chegarmos para a foto, não é que seu sorriso foi padrão?  

- Rorororororô!


Apesar de barbudo, meio dentuço, pousou logo para a foto, sem trabalho algum. O lojista, percebendo minha presença, chegou. Disse que o Papai Noel preto era seu contratado. Elogiei a sua iniciativa.
Foto de 2010 - Papai Noel Mauro César Celestino, Yuri e Consa 
Cliquei daqui. Cliquei dali. A máquina foi passando pelas mãos dos fotógrafos. Era um Papai Noel alto, grandalhão, bem pançudo, importado da África nos tempos da escravidão. Era um senhor de meia idade fantasiado de Noel.

A presença daquele Papai Noel preto no calçadão de Araçatuba produziu mais conscientização do que qualquer Dia da Consciência Negra ou texto escrito em jornal contra o racismo. Com certeza, meu neto, por exemplo, refez alguns de seus pensamentos do alto de seus 06 anos (hoje está com 13). 

No primeiro momento, Papai Noel preto causava escândalo, as pessoas até riam. No segundo momento, já pensavam: “Por que não?” Com certeza, as crianças afrodescendentes acreditarão mais em Papai Noel. Ele tinha a cara delas.


Aquilo que era para ser tão normal, passou a ser tão estranho... O preconceito não está na boca, ele mora no coração.

*Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Membro da Academia Araçatubense de Letras

Nenhum comentário: