AGENDA CULTURAL

21.7.18

Bilhetes



Alice Silva*

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Encontrei dia desses,  no meu baú de memórias, o bilhete de um garoto que me pedia para namorar com ele, há exatamente quarenta e nove anos atrás. Foi guardado com carinho, tendo ele se tornado meu primeiro namorado. Namoro inocente, de pegar na mão no escuro do cinema, de cruzar olhares, mandar flores e cartões, e terminar leve, como começou. 

Muitos romances na minha mocidade começaram assim, trocando bilhetes,  terminava-se também relacionamentos através deles, e hoje esse meio de comunicação caiu em desuso, dando lugar à era digital. Jânio Quadros, quando esteve à frente do Palácio dos Campos Elísios, então sede do governo paulista, se expressou muito por bilhetes. Bilhetes bem escritos, criativos, sarcásticos às vezes, bem de acordo com a personalidade do autor. Vale a pena pesquisar e ler tais preciosidades. 

Suicidas também costumam usar do expediente, expressando muitas vezes tudo aquilo que tinham vontade, mas não tinham coragem de  dizer, e a vida passou , se tornando insuportável, e as questões que incomodavam presas na garganta, até sufocar. Confesso que gosto da comunicação via bilhetes, e tenho boas lembranças de vários deles pela vida afora.  

Quando meus dois filhos eram adolescentes, algumas vezes me ausentei por um curto período, deixando-os em casa, com um adulto responsável presente na maioria do tempo, e ficava bem apreensiva. Deixava um bilhete preso geralmente na geladeira, com recomendações de segurança e ordem, da casa e  deles próprios durante minha ausência. 

Mais tarde, quando adultos, os dois me disseram que faziam questão de desobedecer a maioria daquelas regras. Liam juntos o bilhete, debochavam imitando meus gestos, minha voz. Eles queriam provar que sabiam se virar numa casa sozinhos, livres! E assim desobedeciam com prazer, especialmente um quesito: “nada de promover festas na casa durante minha ausência”. 

Rolaram as melhores festas da casa , segundo eles, daquelas que no dia seguinte, quase a casa inteira tinha que ser organizada. Os próprios convidados, sabedores das regras, iam no outro dia com prazer para a faxina, que de tão animada quase se tornava uma outra festa. Não eram e nunca foram chegados ao consumo de bebidas alcoólicas, mas permitiam e controlavam quem levasse e consumisse. 

Meus pais, avós amorosos, moravam bem perto. Passavam por lá para conferir o que se passava, e cúmplices dos netos mantinham segredo, e todo mundo seguia feliz, pois como diz o ditado: “o que os olhos não veem o coração não sente”. 

Quando foi estudar fora, minha filha deixou pela casa bilhetes de gratidão pelo lar que teve. Eu os encontrava num bule de porcelana pouco usado, num livro de poesias , numa gaveta do escritório, no bolso de um casaco,  e aí era uma choradeira só! E tão significativo quanto um abraço, um beijo afetuoso, aliviavam a saudade que sentia dela. 

Meu filho na adolescência, no auge da rebeldia, deixou um dia um bilhete de despedida, onde dizia estar indo embora, e expressando sua insatisfação com a família. Felizmente durou três dias a aventura, e ele retornou com o aprendizado, sendo recebido com todo amor, e nunca mais quis repetir o ato. 

Guardo com carinho um bilhete de um colega de trabalho, que com uma doença terminal, se despediu de mim com um até breve, dias antes de sua morte,   e os dizeres: “se o amor é branco, e a saudade é preta, somos então xadrezinhos”. 

Quando perdi minha mãe, encontrei em minha caixa de correio um bilhete de uma vizinha distante, por tão pouco que nos comunicávamos,  me consolando e parabenizando pelos cuidados que tive com minha mãe, que para ela era um exemplo a ser seguido. 

Finalizando, há pessoas que chegam em nossa vida como um bilhete de loteria premiado: nos enriquecem, nos estimulam, trazem alegria, esperança e força nos momentos difíceis.

*Alice Mara Barbosa da Silva, escritora, membro do Grupo Experimental da Academia Araçatubense de Letras: alicemara356@gmail.com



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