AGENDA CULTURAL

20.7.18

Um livro da literatura árabe-africana

Resolvi não escrever sobre minha leitura do livro "Tempo de migar para o norte", obra indicada pelo escritor brasileiro Milton Hatoum" para o clube de leitura TAG Experiencias Literárias.

Além da revista que acompanha a obra, que é bastante rica, para o leitor contextualizar o livro a ser lido, nesse volume houve um posfácio da professora Safa A. G. Jubran. Eles me calaram, não deixaram lacuna para que esse pobre leitor preenchesse. 

Peço licença à autora e à TAG para reproduzi-lo neste blog, assim toda a internet terá pois se trata de uma riqueza sobre o livro de maio/2018 que não pode ser escondida, precisa ser socializada, indo além dos muros do clube de leitura. HÉLIO CONSOLARO 

"Não sou Otelo, sou uma farsa”

*Safa A. G. Jubran

Considerada uma das mais importantes obras árabes do século 20, esta excelente novela de Tayeb relata a história de dois indivíduos que viveram durante um considerável espaço de tempo na Inglaterra, em épocas diferentes, e depois voltaram à sua terra natal no Sudão pós-colonial, onde se encontram.

“Tempo de migrar para o norte” fornece um olhar crítico sobre migração e intercâmbio entre África e Inglaterra, colônia versus metrópole – representados aqui pela zona  rural do norte do Sudão e pela Londres cosmopolita da década de 1920 – por meio do narrador-personagem e das experiências pessoais, observações e análises do protagonista Mustafa Said, nascido em 1898, mesmo ano em que o Sudão é declarado colônia inglesa. Said é apresentado como agressor à cultura ocidental-euro-inglesa, usando suas façanhas sexuais para obter vingança, enquanto o narrador é mostrado como defensor passivo da cultura oriental-africana que, ao voltar à sua terra natal, vê seu lugar ocupado por Said. Este confia àquele a história deu sua vida e confessa seus terrores e feitos terríveis.

O sucesso estrondoso desta obra levou-a a ser traduzida para várias línguas e a ser estudada, analisada e criticada por muitos vieses, sobretudo devido à temática, à construção das personagens e ao destino dado a elas na chamada literatura pós-colonial.

Mustafa reflete o legado deixado pelo colonialismo e é produto da cultura ocidental em termos de educação, perspectiva e espírito. Inicialmente, como estrangeiro em território inglês, ele se coloca em posição de controle e poder para subjugar tal Ocidente e o faz exercendo usa sedução sobre as mulheres locais, como parte de seu plano assassino de esgotar (sexual e existencialmente) todas as suas vítimas femininas inglesas, levando-as ao suicídio. Said tem sucesso até finalmente se casar com Jean Morris, quem arruína seu plano e aniquila ao não se entregar a ele, levando-o a percebe r que a única forma de dominá-la seria matando-a. Assim, a tão vangloriada vitória de Mustafa é terminada por Morris, ao transformá-lo em caça após ter sido o caçador, o que opera dentro do romance uma inversão que leva à queda de Mustafa como um herói trágico e a seu esgotamento como um economista respeitado na sociedade inglesa. Após cumprir a pena pelo assassinato, não restava mais nada ao herói derrotado senão retornar ao seu país de origem, onde canalizaria suas habilidades e conhecimento como um homem social produtivo.

Said faz uma descoberta para acabar com a colonização, não se trata da expulsão do colonizador nem de matá-lo, mas de atingi-lo em seus valores colonizadores e sua existência moral. Daí a mudança de rumo do personagem e, consequentemente, da novela quando ele volta ao Sudão e passa a aplicar o que aprender em Londres, disposto a remover da comunidade os valores deixados pelo colonizador. Isso fica evidente quando Said ironiza o narrador quando este lhe diz que estudara poesia: “Aqui, nós não precisamos de poesia. Se tivesse estudado agronomia, engenharia ou medicina, teria sido melhor”. Ou seja: Said não se serviria da cultura nem dos valores europeus, mas de seus conhecimentos técnicos que auxiliariam a desenvolver a vida local.

Talvez Mustafa Said possa ser um personagem construído por Salih como metáfora ao Sudão ou à sua geração, que conviveu  com os primeiros anos da colonização, ou, ainda, a um grupo de pessoas instruídas que se formaram  nas escolas coloniais, mas que não chegaram a ser assimiladas totalmente; sujeitos que conseguiram viver com a razão europeia., mas não foram  reconhecidos  nem ao menos aceitos devido à cor de sua pele: “-... se a filha de um deles tivesse anunciado que ira se casar com esse homem africano, certamente teria sentido o chão fugir sob seus pés”. Salih expõe como o racismo disfarçado com e como o manto civilizatório de valores estéticos (logo etnográficos, econômicos, matrimoniais, jurídicos, políticos, etc.), dissimula cordialidade e condescendência, mas não cessa de excluir, conceder, justificar: Senhores membros do júri, Mustafa Said é um homem nobre, cuja mente foi capaz de assimilar a civilização ocidental, mas essa mesma lhe destroçou o coração”.

Ao final da novela, pode-se ver claramente que cada um dos personagens se esforça para criar seu mundo próprio, ou pela morte, ou pelo renascimento em uma sociedade patriarcal à beira da modernização. Na criação de um mundo pós-colonial, deparamo-nos com dois sujeitos dilacerados entre dois mundos assimétricos: um tentando reverter os efeitos do colonialismo, outro reagindo passivamente diante da retração aos planos frustrados de vingança contra a colônia.

Tal novela, embora tenha sido publicada há mais de cinquenta anos, continua provocando leituras e releituras, interpretações e análises de diferentes perspectivas, mas é preciso destacar uma: sua estrutura textual. O romance organiza-se como poema dramático construído por meio de uma colagem fragmentária e de transposições de imagens e símbolos, sempre em linguagem delicada, elegante, rica e sensual. Felizmente, esta tradução garantiu grande parte do lirismo que flutua sobre o texto original árabe.

Tayeb Salih costumava afirmar que sua intenção era apenas escrever sobre “uma aldeia do Sudão”, e que esta novela seria a primeira de uma trilogia da mesma temática. Como interpretar isso? Teria sido uma manifestação de modéstia ou de indiferença diante do sucesso alimentado por todo tipo de crítica? Seja como for, a novela é, por excelência, um exemplo de literatura ideológica, fato que não se pode negar nem disfarçar. De qualquer modo, sua leitura traz um sempre renovado interesse, repondo o problema da imigração e de seus efeitos inevitáveis, não somente sobre os que acham que é “tempo de migrar”, mas sobre os eu habitam as terras do “norte”. Isso ecoa o conflito contemporâneo vivido pela Europa, com insistência em impor, dentro de seus territórios nacionais, seus valores aos que chegam até ela e com a pergunta sobre se, agora e afinal, a mesma Europa pós-colonial não teria o direito de preservar sua identidade. Salih parece estar adiantado quase meio século ao dizer “não” é infalível  não arcar com os efeitos do “germe do mal mortal” com o qual os povos colonizados foram infectados há mais de mil anos, como repete o protagonista ao longo  de “Tempo de migrar para o norte”  

--> Safa A. G. Jubran, 2018, professora da USP, passou a morar no Brasil com 19 anos.  

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