Resolvi não escrever sobre minha leitura do livro "Tempo de migar para o norte", obra indicada pelo escritor brasileiro Milton Hatoum" para o clube de leitura TAG Experiencias Literárias.
Além da revista que acompanha a obra, que é bastante rica, para o leitor contextualizar o livro a ser lido, nesse volume houve um posfácio da professora Safa A. G. Jubran. Eles me calaram, não deixaram lacuna para que esse pobre leitor preenchesse.
Peço licença à autora e à TAG para reproduzi-lo neste blog, assim toda a internet terá pois se trata de uma riqueza sobre o livro de maio/2018 que não pode ser escondida, precisa ser socializada, indo além dos muros do clube de leitura. HÉLIO CONSOLARO
"Não sou Otelo, sou uma farsa”
*Safa A. G. Jubran
Considerada uma das mais importantes obras árabes do século
20, esta excelente novela de Tayeb relata a história de dois indivíduos que
viveram durante um considerável espaço de tempo na Inglaterra, em épocas diferentes,
e depois voltaram à sua terra natal no Sudão pós-colonial, onde se encontram.
“Tempo de migrar para o norte” fornece um olhar crítico
sobre migração e intercâmbio entre África e Inglaterra, colônia versus metrópole
– representados aqui pela zona rural do
norte do Sudão e pela Londres cosmopolita da década de 1920 – por meio do narrador-personagem
e das experiências pessoais, observações e análises do protagonista Mustafa
Said, nascido em 1898, mesmo ano em que o Sudão é declarado colônia inglesa.
Said é apresentado como agressor à cultura ocidental-euro-inglesa, usando suas
façanhas sexuais para obter vingança, enquanto o narrador é mostrado como
defensor passivo da cultura oriental-africana que, ao voltar à sua terra natal,
vê seu lugar ocupado por Said. Este confia àquele a história deu sua vida e
confessa seus terrores e feitos terríveis.
O sucesso estrondoso desta obra levou-a a ser traduzida para
várias línguas e a ser estudada, analisada e criticada por muitos vieses,
sobretudo devido à temática, à construção das personagens e ao destino dado a
elas na chamada literatura pós-colonial.
Mustafa reflete o legado deixado pelo colonialismo e é produto
da cultura ocidental em termos de educação, perspectiva e espírito.
Inicialmente, como estrangeiro em território inglês, ele se coloca em posição
de controle e poder para subjugar tal Ocidente e o faz exercendo usa sedução sobre
as mulheres locais, como parte de seu plano assassino de esgotar (sexual e
existencialmente) todas as suas vítimas femininas inglesas, levando-as ao suicídio.
Said tem sucesso até finalmente se casar com Jean Morris, quem arruína seu
plano e aniquila ao não se entregar a ele, levando-o a percebe r que a única
forma de dominá-la seria matando-a. Assim, a tão vangloriada vitória de Mustafa
é terminada por Morris, ao transformá-lo em caça após ter sido o caçador, o que
opera dentro do romance uma inversão que leva à queda de Mustafa como um herói
trágico e a seu esgotamento como um economista respeitado na sociedade inglesa.
Após cumprir a pena pelo assassinato, não restava mais nada ao herói derrotado
senão retornar ao seu país de origem, onde canalizaria suas habilidades e
conhecimento como um homem social produtivo.
Said faz uma descoberta para acabar com a colonização, não
se trata da expulsão do colonizador nem de matá-lo, mas de atingi-lo em seus
valores colonizadores e sua existência moral. Daí a mudança de rumo do
personagem e, consequentemente, da novela quando ele volta ao Sudão e passa a
aplicar o que aprender em Londres, disposto a remover da comunidade os valores
deixados pelo colonizador. Isso fica evidente quando Said ironiza o narrador
quando este lhe diz que estudara poesia: “Aqui, nós não precisamos de poesia.
Se tivesse estudado agronomia, engenharia ou medicina, teria sido melhor”. Ou
seja: Said não se serviria da cultura nem dos valores europeus, mas de seus
conhecimentos técnicos que auxiliariam a desenvolver a vida local.
Talvez Mustafa Said possa ser um personagem construído por
Salih como metáfora ao Sudão ou à sua geração, que conviveu com os primeiros anos da colonização, ou,
ainda, a um grupo de pessoas instruídas que se formaram nas escolas coloniais, mas que não chegaram a
ser assimiladas totalmente; sujeitos que conseguiram viver com a razão
europeia., mas não foram reconhecidos nem ao menos aceitos devido à cor de sua
pele: “-... se a filha de um deles tivesse anunciado que ira se casar com esse homem
africano, certamente teria sentido o chão fugir sob seus pés”. Salih expõe como
o racismo disfarçado com e como o manto civilizatório de valores estéticos
(logo etnográficos, econômicos, matrimoniais, jurídicos, políticos, etc.),
dissimula cordialidade e condescendência, mas não cessa de excluir, conceder,
justificar: Senhores membros do júri, Mustafa Said é um homem nobre, cuja mente
foi capaz de assimilar a civilização ocidental, mas essa mesma lhe destroçou o
coração”.
Ao final da novela, pode-se ver claramente que cada um dos
personagens se esforça para criar seu mundo próprio, ou pela morte, ou pelo renascimento
em uma sociedade patriarcal à beira da modernização. Na criação de um mundo pós-colonial,
deparamo-nos com dois sujeitos dilacerados entre dois mundos assimétricos: um
tentando reverter os efeitos do colonialismo, outro reagindo passivamente diante
da retração aos planos frustrados de vingança contra a colônia.
Tal novela, embora tenha sido publicada há mais de cinquenta
anos, continua provocando leituras e releituras, interpretações e análises de
diferentes perspectivas, mas é preciso destacar uma: sua estrutura textual. O
romance organiza-se como poema dramático construído por meio de uma colagem
fragmentária e de transposições de imagens e símbolos, sempre em linguagem
delicada, elegante, rica e sensual. Felizmente, esta tradução garantiu grande
parte do lirismo que flutua sobre o texto original árabe.
Tayeb Salih costumava afirmar que sua intenção era apenas
escrever sobre “uma aldeia do Sudão”, e que esta novela seria a primeira de uma
trilogia da mesma temática. Como interpretar isso? Teria sido uma manifestação
de modéstia ou de indiferença diante do sucesso alimentado por todo tipo de crítica?
Seja como for, a novela é, por excelência, um exemplo de literatura ideológica,
fato que não se pode negar nem disfarçar. De qualquer modo, sua leitura traz um
sempre renovado interesse, repondo o problema da imigração e de seus efeitos inevitáveis,
não somente sobre os que acham que é “tempo de migrar”, mas sobre os eu habitam
as terras do “norte”. Isso ecoa o conflito contemporâneo vivido pela Europa,
com insistência em impor, dentro de seus territórios nacionais, seus valores
aos que chegam até ela e com a pergunta sobre se, agora e afinal, a mesma
Europa pós-colonial não teria o direito de preservar sua identidade. Salih
parece estar adiantado quase meio século ao dizer “não” é infalível não arcar com os efeitos do “germe do mal
mortal” com o qual os povos colonizados foram infectados há mais de mil anos,
como repete o protagonista ao longo de “Tempo
de migrar para o norte”
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