AGENDA CULTURAL

2.8.21

No ano passado eu morri


Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Araçatuba-SP

Meu amigo Toninho Caracol me mandou um vídeo de Vannich Belchior cantando as músicas do pai dela e ídolo de minha geração. Dentre elas, cantou "Sujeito de Sorte" com aqueles versos "Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro / Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro".

Na verdade, tais versos são paraibanos, de Zé Limeira , escrito há 100 anos, mas Belchior não deu o crédito de autoria para o "Poeta do absurdo", perífrase dada ao repentista por Orlando Tejo. 

Poesia boa rola e desenrola e sempre aparece na sacola, os versos de Zé Limeira nunca foram escritos, apenas em 1973 (três anos antes de Belchior gravar "Sujeito de sorte") por um jornal da Paraíba. 

Zé Limeira era um negro analfabeto, nascido no final do século 19, em Teixeira (Paraíba), que morreu em 1955. Seus versos atravessaram a oralidade incólume, com alguns registros escritos num rodapé de página de jornal, quase todo o século 20.  

Atualmente, Emicida repete os mesmos versos na música "Amarelo", citando como autor Belchior, reproduzindo trecho da voz do cantor cearense. Provavelmente não sabia da existência do verdadeiro autor.

O tempo voa, mas os versos de Zé Limeira chegaram ao século 21 com outro sentido e se transformaram em grafite e andam povoando os muros das grandes cidades, tornando-se uma forma dos grafiteiros humanizar as cidades.    

A paródia dos versos de Zé Limeira, apequenando-os, cabe bem para os ex-bolsonaristas de 2018 cantarem nas eleições de 2022: 

"Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro / Na eleição passada eu morri, mas na eleição desse ano eu não morro".

E assim caminha a arte e a literatura, se transformam, ganham sentidos novos e resistem no rolar das pedras do tempo.  

Um comentário:

Unknown disse...

Ainda bem que tem pessoas como o senhor, senão ficariam muitos compositores, poetas , escritores no anominato.