A obra de Voltaire trata do martírio de Jean Calas, comerciante de 68 anos, de Toulouse (França), acusado de matar um dos filhos e sentenciado à morte no ano de 1762. O fato e as circunstâncias se assemelham ao Brasil de hoje. O cenário envolve manipulação da religião, intolerância, fake news e, pasmem para a maior coincidência, um juiz corrupto.
A família Calas é protestante, mas um dos filhos e a empregada de mais de 30 anos na casa são católicos, religião da maioria da população. Um outro filho, Marc-Antoine, profissionalmente fracassado, sombrio e violento, decide se matar o faz mediante enforcamento na noite em que a família recebera a visita do jovem amigo Lavaisse para o jantar.
De imediato, uma turba toma o entorno da casa dos Calas e um anônimo acusa Jean de ter assassinado Marc-Antoine com a ajuda da esposa, do filho Pierre, de Lavaisse e da empregada. O motivo do crime era a conversão de Marc-Antoine ao catolicismo. De imediato, a maioria dos moradores de Toulouse aceita como verdadeira a acusação de que os protestantes têm ódio dos católicos. “Todos os filhos católicos de famílias protestantes serão assassinados pelos pais”, era a fake de então.
Dos 13 juízes da Corte de Toulouse, sete não estavam convictos de que Marc-Antoine fora assassinado pela família e agregados, inclusive a empregada católica. Não havia prova. Aí entra o juiz corrupto (a corrupção moral é mais antiga do que a corrupção financeira), que manipula o processo. Por fim, Jean Calas é condenado à pena capital e executado da maneira mais perversa, o chamado “suplício da roda”, que consiste no esmagamento dos braços, das pernas e, como golpe de misericórdia, da coluna vertebral.
Após a execução do comerciante, a esposa, Pierre, Lavaisse e a empregada são absolvidos, apesar de continuarem moralmente condenados e perseguidos. A absolvição dos quatro e a condenação do idoso se contradizem, desmoralizando a Corte. “Ao diabo, a desmoralização”, diriam os devotos, que preferem supliciar um velho protestante inocente a reconhecer o erro de juízes que lhes prestaram um favor. Devoto tem origem no latim devotus (aqueles que se dedicam à salvação da República). Ou seja: os que se julgam “salvadores da pátria”.
(*) Antônio Reis é jornalista e ativista do Grupo Experimental da AAL.
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