AGENDA CULTURAL

4.2.23

Roraima: um reserva garimpeira - Marina Amaral - Agência Pública

Acampamento ilegal de garimpeiros dentro do território Yanomami. 

Denarium, o governador do ouro

Entrevistei Antonio Denarium em agosto de 2022 no Palácio Hélio Campos, em Boa Vista, Roraima. Embora seu ativismo pró-garimpo, assim como a ligação com o presidente Bolsonaro, fossem conhecidos, fiquei impressionada com a ignorância em relação aos povos originários e o desdém por seus direitos constitucionais expressos na fala do governador do estado mais indígena do país.

"Os indígenas, isso é o que acontece, não estou discriminando, praticamente não produz (sic) nada. Eu tenho que manter as estradas e pontes, eu tenho que dar saúde, eu tenho que dar a segurança alimentar pra eles, programas sociais, eu tenho que fazer cirurgia, eu tenho que fazer exames. Quanto os índios pagam de imposto? Zero", disse num trechinho da entrevista recheada de frases do mesmo calibre, além da defesa intransigente do garimpo. “Eu faço tudo para colocar na legalidade”, repetiu. 

Naquele momento, o impacto do garimpo ilegal no território Yanomami já era definido pelo procurador Alisson Marugal, titular de direitos indígenas do MPF, como "uma tragédia humanitária em curso", "principalmente na porção roraimense do território", invadida por cerca de 20 mil garimpeiros (são 28 mil indígenas na TI). "A situação sanitária, de segurança cultural, econômica, alimentar, de saúde, a violência, exploração sexual de mulheres e crianças, a penetração de armamento, bebida alcoólica, enfim, todos os indicadores se deterioram rapidamente", detalhou.  

Denarium, porém, um mês antes de nossa entrevista, havia sancionado uma lei estadual proibindo a destruição de equipamentos apreendidos em operações de fiscalização ambiental em Roraima (suspensa em outubro de 2022 pelo STF). Era sua segunda tentativa de criar "uma reserva garimpeira no estado", nas palavras do amigo e maior empresário do garimpo em terras Yanomami, Rodrigo Cataratas, fundador do movimento “Garimpo é Legal”. Uma outra lei estadual, articulada por deputados aliados, que “regulamentava” a utilização de mercúrio nos garimpos, chegou a entrar em vigor, e foi anulada pelo STF em setembro de 2021.

O governador pode até enganar com seu jeito sonso, mas ele sempre soube que as leis seriam anuladas porque ambas são inconstitucionais. Intimidar a fiscalização e demonstrar o apoio de seu governo ao garimpo mobiliza seu grupo político - que é principalmente de pecuaristas e sojeiros, como ele mesmo - por se opor à legislação ambiental e aos direitos indígenas; seus eleitores boavistenses, que representam 70% do eleitorado de Roraima (sobre isso, vale ler a reportagem); e é atrativo para financiadores de campanha - ele foi eleito governador em 2018, na esteira do bolsonarismo e se reelegeu em primeiro turno no ano passado. 

Também movimenta um setor que lhe é muito caro - o de crédito - fundamental para os empreendedores do garimpo ainda não tão ricos como Rodrigo Cataratas. São muitos os que se endividam para pagar avião, comprar equipamentos, manter gente na floresta. Ao lado de compra de terras griladas - ou recém regularizadas como aconteceu em massa depois de um acordo Denarium/Bolsonaro em 2021 -, e da madeira proveniente de um dos estados da Amazônia mais preservados (apesar do crescimento de 122% do desmatamento nos três últimos anos) - essa é uma das oportunidades que Roraima oferece aos que vem para o extremo norte do país em busca de riqueza.

Como o próprio governador que chegou de Goiás em 1992 como gerente do ex-banco Bamerindus ainda como Antonio Oliverio Garcia de Almeida. Ganhou o sobrenome Denarium, por extensão dos negócios - em 2001 ele abriu uma factoring (empresa de crédito que adianta pagamentos sobre títulos), a Denarium Fomento Mercantil Ltda, que alguns anos depois ganhou um braço imobiliário. Na capital roraimense, ficou conhecido como Denarium, o homem que empresta dinheiro. Entre 2010 e 2022, seu patrimônio cresceu 10 vezes. 

Em junho do ano passado, o Ministério Público de Roraima abriu uma investigação contra o governador por agiotagem depois de receber denúncias (entre elas a de um madeireiro) de que bens imobiliários eram oferecidos como garantia a empréstimos na Denarium Fomento Ltda, o que não é permitido às factorings. A notícia-crime do MPF foi enviada à Procuradoria Geral da República porque o governador tem foro privilegiado. 

Além de cortar o tráfego aéreo para a TI Yanomami, fechar as pistas clandestinas, fazer a desintrusão dos garimpeiros, é preciso monitorar a venda ilegal de ouro e sufocar o esquema de financiamento a atividades ilegais - do garimpo à extração de madeira. 

Se agora o crime organizado na Amazônia não conta mais com o apoio do governo federal, e temos a roraimense Joenia Wapichana na Funai, Denarium permanece no posto de governador, com suas empresas abertas.

Em 1992, o ex-presidente Fernando Collor retirou 10 mil garimpeiros da Terra Yanomami depois de uma campanha internacional liderada por Davi Kopenawa, pajé Yanomami respeitado no mundo todo. Em 2017, em uma entrevista à Pública, Davi alertava para os sinais de uma nova invasão, que explodiria no governo Bolsonaro: “Tem que continuar a trabalhar, lutar, a cultura branca é muito forte. Dinheiro é uma doença”, ensinava. 

Para garantir de fato a proteção dos povos indígenas temos que mudar o país. 



Marina Amaral
Diretora executiva da Agência Pública

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