Durante o cortejo entre a Praça São Pedro e a catedral onde foi sepultado o corpo de Francisco, as ruas lotadas de Roma para dar o último adeus se transformaram num testamento vivo do papa.
Enquanto o caixão passava e as igrejas tocavam seus sinos, milhares de pessoas nas calçadas jogavam flores, aplaudiram e choraram.
Francisco, em suas reformas, buscou romper com a lógica de uma Cúria que havia optado por preservar seus privilégios e poderes, em detrimento de sua doutrina social pelo mundo. Denunciou a hipocrisia de líderes políticos e religiosos, e por isso foi odiado por aqueles que instrumentalizam a fé.
Mas ruas de Roma estava a constatação de que parcelas importantes de cristão e ateus entenderam a mensagem do papa.
Fé e poder andam de mãos dadas no percurso da humanidade. A história da religião está repleta de noites sangrentas. Sempre me chamou a atenção como um tirano escolhia a religião que adotaria em seu reinado com base nas alianças que gostaria de construir, no poder que almejava conquistar. Tratava-se de uma decisão geopolítica, depois transformada em decreto que obrigaria cada súdito a rever suas crenças mais íntimas.
Se o cristianismo foi tão revolucionário ao dar espaço para mulheres e escravos naquele seu momento de nascimento da religião e tão rebelde por falar de igualdade, é perturbador como foram necessários quase 2 mil anos, escravidão, imperialismo, a aliança entre a cruz e a espada e genocídios em nome da fé para que alguns desses princípios se tornassem leis na Justiça dos homens.
Quando me sento diante do Guernica de Picasso, sou tomado por uma profunda repulsa diante da "sacralización" do golpe de 1936 na Espanha, transformado em guerra santa. Foi necessário o abalo sísmico da Segunda Guerra Mundial para que a busca por sentido da vida reaparecesse na agenda política. Claro, enquanto o genocídio era negro, indígena ou simplesmente longe dos olhos dos centros de poder, isso não parecia uma urgência.
No Brasil, vivemos mais um capítulo do sequestro da fé para fins políticos. Na busca por controle, vendedores de ilusões transformaram a aventura legítima de uma pessoa por um sentido na vida em instrumento de poder.
Charlatães que vendem esperança como política pública, em troca de votos e dinheiro. Criminosos que, diante de uma era de incertezas que nos afeta a todos, recorrem a instrumentos de persuasão. Usam a fé para legitimar a discriminação, o racismo e a violação aos direitos humanos.
A intolerância voltou a ser uma medalha que alguns carregam com orgulho no peito, inclusive por aqueles em postos de autoridade. Locais de oração foram transformados em palanques, enquanto armas se misturam com versículos da Bíblia. Sob o manto de Deus, a necropolítica é alçada a uma estratégia de poder.
Não consigo evitar um sentimento de profunda frustração quando ouço hipócritas que falam em fé quando destroem sonhos, vidas e liberdades de meninas. De cínicos que colocam o nome "Mulher" na porta de um ministério.
O papa, porém, nos ensinou nesses últimos anos que a oração deve vir acompanhada por uma ação coerente. Em muitas partes do mundo, o que está em jogo é a sobrevivência dos valores humanistas, de um projeto de democracia.
Uma espécie de tradução de alguns dos conceitos revolucionários do cristianismo.
Um comentário:
Muito bom. Estou plenamente de acordo. O mundo hoje tresanda a hipocrisia
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