AGENDA CULTURAL

20.3.22

Pandemia, tragédias e farsas - Antônio Reis

Dia 18 de março de 2020, como medida de prevenção à covid-19, comecei a trabalhar em home-office e assim permaneço até hoje. Sobrou tempo para meus prazeres, como ler, ouvir música, estudar fotografia. Li muito coisa que estava acumulada aguardando sua hora. Também reli outras tantas, mas nenhuma me impressionou tanto como o “Tratado sobre a tolerância”, de Voltaire, que li muito jovem e sem a maturidade devida. Ou, quem sabe, não acreditasse que o descrito naquela obra se repetiria 250 anos depois.

A obra de Voltaire trata do martírio de Jean Calas, comerciante de 68 anos, de Toulouse (França), acusado de matar um dos filhos e sentenciado à morte no ano de 1762. O fato e as circunstâncias se assemelham ao Brasil de hoje. O cenário envolve manipulação da religião, intolerância, fake news e, pasmem para a maior coincidência, um juiz corrupto.

A família Calas é protestante, mas um dos filhos e a empregada de mais de 30 anos na casa são católicos, religião da maioria da população. Um outro filho, Marc-Antoine, profissionalmente fracassado, sombrio e violento, decide se matar o faz mediante enforcamento na noite em que a família recebera a visita do jovem amigo Lavaisse para o jantar.

De imediato, uma turba toma o entorno da casa dos Calas e um anônimo acusa Jean de ter assassinado Marc-Antoine com a ajuda da esposa, do filho Pierre, de Lavaisse e da empregada. O motivo do crime era a conversão de Marc-Antoine ao catolicismo. De imediato, a maioria dos moradores de Toulouse aceita como verdadeira a acusação de que os protestantes têm ódio dos católicos. “Todos os filhos católicos de famílias protestantes serão assassinados pelos pais”, era a fake de então.

Dos 13 juízes da Corte de Toulouse, sete não estavam convictos de que Marc-Antoine fora assassinado pela família e agregados, inclusive a empregada católica. Não havia prova. Aí entra o juiz corrupto (a corrupção moral é mais antiga do que a corrupção financeira), que manipula o processo. Por fim, Jean Calas é condenado à pena capital e executado da maneira mais perversa, o chamado “suplício da roda”, que consiste no esmagamento dos braços, das pernas e, como golpe de misericórdia, da coluna vertebral.

Após a execução do comerciante, a esposa, Pierre, Lavaisse e a empregada são absolvidos, apesar de continuarem moralmente condenados e perseguidos. A absolvição dos quatro e a condenação do idoso se contradizem, desmoralizando a Corte. “Ao diabo, a desmoralização”, diriam os devotos, que preferem supliciar um velho protestante inocente a reconhecer o erro de juízes que lhes prestaram um favor. Devoto tem origem no latim devotus (aqueles que se dedicam à salvação da República). Ou seja: os que se julgam “salvadores da pátria”.

 Encerrar o spoiler do “Tratado” com os “guardiães da moral, dos bons costumes e da pátria amada salve, salve” é mais uma coincidência que me faz recorrer ao também francês Etienne de La Boétie: “Uma das artimanhas dos tiranos é bestializar os seus súditos”. Por fim, devo admitir que a pandemia de covid-19 me foi útil para recordar a teoria marxista de que os fatos relevantes da história ocorrem duas vezes: a primeira como tragédia e a segunda como farsa.

(*) Antônio Reis é jornalista e ativista do Grupo Experimental da AAL. 

antonio.reis.jornalista@gmail.com 

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