AGENDA CULTURAL

20.9.06

No tempo dos orelhões

Hélio Consolaro


A expressão "caiu a ficha" já é um arcaísmo, só usada em sentido figurado.

Foi-se o tempo em que se andava com bolsos e bolsas cheios de fichas telefônicas. Pessoa bem prevenida não deixava de tê-las à mão.

"Caiu a ficha" está ficando parecida com a "assoviar e chupar cana". Outro dia, eu disse isso em sala de aula. Os alunos ficaram com cara de espanto.

Expliquei-lhes que antigamente os meninos não chupavam chiclete, mas cana, descascada, cortada, cujos gomos eram rachados à faca.

No domingo, era barato fazer festa: enchia-se uma bacia de pedaços de cana e fortalecíamos os dentes, deixando a cana-de-açúcar em bagaço, como uma moenda. Enquanto os homens, na venda, enchiam a cara com a caninha.

Então, na classe, eu substituí a expressão: assoviar e mascar chiclete. Aí os alunos entenderam, mas ninguém diz isso também, foi apenas uma adaptação que busquei na hora.

Ontem li nesta Folha que os telefones públicos estão sendo retirados de circulação, estão em desuso. As fichas, há muito, foram substituídas pelos cartões magnéticos. O orelhão está virando saudade, como o lampião de gás. Hoje, para cada dois brasileiros, um tem celular.

O aluno orelhudo era zoado pelos colegas, chamado de posto telefônico ambulante, pois tinha um orelhão de cada lado da cabeça.

Na década de 80, quando fui vereador, a reivindicação dos bairros era ter um telefone público, porque, por ele, se chamava a polícia, a ambulância, as comadres conversavam, os amantes namoravam e marcavam encontros.

Havia até o orelhão que recebia chamada. Se o telefone ficava próximo a um estabelecimento comercial (bar, empório, mercearia), o dono anotava os recados da freguesia, como forma de prestar serviço e ampliar as vendas.

A Telesp (lembra-se dela?) fazia campanha para que não depredassem os telefones públicos, e os usuários inventavam técnicas para burlá-la: usar o serviço sem gastar ficha ou cartão magnético.

Mas nem tudo era tão romântico, porque ter um telefone era privilégio de poucos.Especuladores ganhavam dinheiro, havia até locadoras de linhas telefônicas. Nesta Folha, no caderno Classificados, a seção "telefones" disputava espaço com a de "carros".

O Estado de Mato Grosso do Sul possui abrigos de telefones públicos em forma de bichos de sua fauna.

E em Itu, há orelhões gigantes, como tudo, pois até os ituanos também ficaram com fama de bem-dotados.

Se você, caro leitor, ainda usa o orelhão, for aquele bicho raro, por favor, me ligue dele, pois desconfio que resiste à modernidade, é muito pobre ou, então, é um tremendo pão-duro.



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