AGENDA CULTURAL

15.11.06

Pisar na borrachinha

Hélio Consolaro

Há muitos eufemismos para designar o verbo morrer. Que nome feio é esse? É uma figura de linguagem, um truque lingüístico pra gente dizer uma coisa feia de uma forma mais suave, que não provoque indignação.

O dicionário Aurélio, por exemplo, registra dezenas de eufemismos para o verbo “morrer”, porque antigamente (e ainda hoje há gente com cabeça de antigamente) confundia-se a palavra com a coisa. Para não pronunciar câncer (porque, se falar, pode contrair a doença), diz-se c.a.

Eu poderia encher esta página de eufemismos do verbo morrer, mas não o farei, afinal, o assunto promete e não preciso e nem aprecio a prolixidade. Ou como se dizia antigamente: encher lingüiça.

Para conhecimento de meus 33 leitores, farei uma lista dos mais conhecidos em nossa região: abotoar o paletó, adormecer no Senhor, apagar, bater as botas, bater a caçoleta, comer capim pela raiz, dar a alma a Deus, descansar, embarcar deste mundo para um melhor, empacotar, entregar a alma a Deus, entregar a rapadura, esticar a canela, fechar os olhos, ir para a cidade dos pés juntos, ir para a Cucuia, ir para o beleléu, ir para o outro mundo, ir desta para melhor, pifar, vestir o paletó de madeira, virar presunto.

Não é só o povão que inventa eufemismos, caro leitor. Os doutores também tem lá seus medos. Na gíria médica, quando um paciente está dependendo de aparelhos para viver, e fica, e fica no hospital e não morre, dizem no jargão deles:

- Está na hora de alguém pisar na borrachinha!

Como se fosse um descuido, pisa-se na borrachinha, bloqueia o soro, o oxigênio, e a pessoa morre como se fosse morte natural. Seria uma eutanásia disfarçada. Não sei se isso já aconteceu alguma vez, mas é uma piadinha que corre por aí.

Leio nesta Folha, edição de domingo, que médicos gostaram da decisão do Conselho Federal de Medicina que aprovou a ortotanásia, a boa morte, aquela que abrevia a vida de quem não tem mais cura, desde que haja autorização da família.

Fiquei como o jagunço Damázio, do conto Famigerado, de Guimarães Rosa: estão querendo me enganar. E fui ao dicionário. Eutanásia, etimologicamente, significa morte sem sofrimento. Ortotanásia, morte correta, sem sofrimento, boa morte, natural.

Está aí, caro leitor, um eufemismo. Dizer que se recomenda a eutanásia choca, mas escrever que a ortotanásia pode acontecer, não. E assim, nós, hipocritamente, aceitamos uma coisa que estava em discussão há muito tempo, mas com outro nome.

Bem que Machado de Assis escreveu: a hipocrisia é menos dolorosa que a autenticidade. E viva o eufemismo!

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