AGENDA CULTURAL

4.1.07

Quatro maços de vela

Hélio Consolaro

O caixão do avô chegou à capela funerária. A parte da família Testemunha de Jeová virou ouriço. Vela não, cruz também não. A parte católica queria tudo: vela, crucifixo, terço. Como o morto era Testemunha de Jeová, fez-se a vontade dele. Só que a briga marcou muito a família. Essas coisas de ficar sem conversar por algum tempo, fuxico daqui, diz-que-diz dali.

O neto Luciano, junto com outros netos do avô morto, presenciou tudo. E criança tem uma memória de computador. Guardou tudo, muito mais, tudo aquilo lhe marcou muito. Tempos depois, resolveu estudar para padre, era seminarista. Foi um deus-nos-acuda, a parte Testemunha de Jeová mais uma vez se escandalizou.

Luciano teve sorte, era um seminarista de regime aberto, albergado. Continuava a morar em casa, a estudar na mesma escola e recebia a instrução religiosa com o padre da paróquia. Só os parentes, os amigos mais íntimos ou quem perguntasse saberia que Luciano era um seminarista.
Agosto é mês de vento. A família foi novamente convocada às pressas. Tios, tias, primas, namorado da prima. Um fuzuê na casa da avó. Ela estava nas últimas. Embora ela fosse testemunha de Jeová, havia sido filha-de-maria no seu tempo de catolicismo. E para escândalo da parte Jeová, confessou num momento de franqueza que nutria uma certa admiração por Maria, mãe de Deus. Luciano riu no canto da boca e jogou um olhar de ternura sobre a avó, sentada na cadeira de área.

A avó agonizava no leito de morte. Choro, constrangimento, consolação, expectativa. A velha agonizava, agonizava, não, morria. De repente, armou um temporal de chuva, uma ventania forte batia portas e deixou a cidade sem energia elétrica. Como já era entardecer, mais a escuridão própria dos temporais, o ambiente ficou sinistro. Vento assobiando, portas batendo, choro inconsolável e alguém agonizando, à espera da morte.

Acenderam fósforos, isqueiros. Luciano, precavido, foi ao carro do pai e pegou quatro maços de vela e entregou-os à mãe. A título de clarear, de jogar luz na escuridão, acenderam velas por toda a casa, principalmente no quarto onde a avó agonizava. Mas assim mesmo, a velha resistia, não morria.

Diante de cena tão surrealista, Luciano foi ao carro, se fechou nele. Começou a rezar, pedir pela morte da avó, que Deus fizesse a sua vontade. Meia hora depois, bateram no vidro do carro: “A vó morreu!”
Luciano correu ao encontro da avó morta. Encontrou-a linda, morta, com um sorriso nos lábios. As velas, já no toco, continuavam acesas, com chamas mais vivas. De repente, o temporal foi embora, e as lâmpadas acenderam-se.

Um comentário:

Anônimo disse...

Determinismo fenomenológico, Consa? Valeu!