Replantar o passado

Hélio Consolaro

É mais fácil / Cultuar os mortos / Que os vivos / Mais fácil viver / De sombras que de sóis / É mais fácil / Mimeografar o passado / Que imprimir o futuro... (Zeca Baleiro)

Araçatuba comemora 100 anos. Terra arrasada. A região está toda devastada, os pássaros não cantam porque não têm onde pousar, nem inseto para comer. Urubus fazem ninhos em árvores frondosas de cimento armado. Machados, motosserras, inseticidas. Construímos uma cidade. Como escreveu Drummond, se formos pra Lua, Marte, Vênus, Saturno faremos o mesmo. Amazônia é o exemplo. Reproduzimos no exterior nosso interior. A única e perigosíssima viagem, para mudar tudo isso, é mergulhar dentro de si mesmo. Tudo mudou, nada mudou. Continuamos os mesmos. Aliás, somos assim desde a Grécia Antiga. Leia a história política de Araçatuba, caro leitor. Você vai encontrar crises políticas pior da que atravessamos. Malulão, Dunga, Marilene Magri são repetições do passado. Outro dia fui convidado pela professora Maria Buzati da Escola Estadual Purcina Elisa de Almeida para falar sobre o centenário de Araçatuba. Um bando de adolescentes escutou um sessentão narrar o passado, para eles, remoto. Comecei a falar do trem, dos caincangues. - Eu conheci o Juçara quando tal palavra não era um bairro, apenas uma palmeira onde não cantava o sabiá, porque esse pássaro não tem coqueiro como habitat. - Eu vi nascer o Supermercado Rondon... De repente, vinha uma observação inocente em forma de insulto: - O senhor é velho, hein!? Tirei aquela bola inoportuna de campo e continuei enfrente, contando a minha história de Araçatuba, porque cada contador dá sua versão. - Participei dos festejos do cinqüentenário assistindo às acrobacias de Peter e Marion, em cabo de aço estendido entre a Igreja Matriz e o Edifício Paiva, sobre a praça Rui Barbosa. Eu era um menino de dez anos com o coração aos sobressaltos, com medo de eles caírem... Mal sabia que o equilíbrio faz a vida mais saborosa. Choveram perguntas. Como era namorar? Era legal ser jovem naquela época? Este croniqueiro contou vantagens. Cinemas, repressão sexual, zona de meretrício: - Naquele tempo, era só casando! O “vôti, meu”, saiu aos montes. - Beatles e Roberto Carlos! Cabelos longos. Tudo era uma brasa, mora! Quase confessei àqueles meninos e meninas que havia sido garçom da Santa Ceia, só não havia saído na fotografia, porque era um subalterno. Os mortos nos explicam, mas os vivos valem mais. A sombra nos dá o descanso do sol escaldante. Meu mimeógrafo se encontra inútil na dispensa. Em minhas retinas, há rios cristalinos, matas verdejantes e pássaros gorjeadores. Replantar o passado é uma forma de imprimir o futuro.