AGENDA CULTURAL

13.11.10

Cadê o meu dente?

Hélio Consolaro*

Não sei se só comigo ocorrem desastres. Sim, porque desastroso é uma palavra derivada de desastre. Leio “Poema em linha reta”, de Fernando Pessoa, e faço uma catarse, me identifico, porque, na verdade, todos escondem seus fracassos e só revelam o sucesso. Eu sou um anjo torto, os demais semideuses.

Deixe pra lá, além de tudo acontecer comigo, ainda, conto os desastres a meus leitores. Assim fico mais completo e faço os leitores rirem. Afinal, rir custa menos que chorar. Ir de seus próprios erros é uma evolução do espírito.

Quando se chega a certa idade, a boca se enche de lorotas, feitos homéricos, mas principalmente de próteses. Antigamente, bem antigamente, na juventude se extraíam todos os dentes, alguns já careados, e punha-se a dentadura. Custava uma fortuna, mas era menos dor de dente. Hoje, o tal de implante leva velhinhos e velhinhas mais vaidosas a contrair empréstimos bancários.

Nas escolas, sempre contam casos de que determinado professor, quando dava aula, aos berros, teve uma prótese dentária que voou boca afora. Eu achei que comigo nunca aconteceria, caro leitor, mas, infelizmente, já paguei este mico. Na hora, a saída é levar tudo na gozação, catar o dente no chão e dizer:

- Vocês vão chegar a isso um dia, seus cabeçudos...

Então, caro leitor, outro dia, comendo uma pizza em casa, uma coroa (já não bastam as mulheres), resolveu sair de seu lugar. É sempre assim, tais muletas dentárias caem provocadas por alimentos bem cozidos e moles.
Agarrei-a e agradeci a Deus: "Ainda bem que não a engoli..."

Telefonei ao meu dentista, e ele me marcou horário. Antes de sair de casa, montei a barraca:

Cadê meu dente?

Sumiu!

Passou-se vassoura no ladrilho, etc. Eu olhava para a cadelinha poodle de casa e pensava: “Bilica, você comeu o meu dente, infeliz...”

A Bilica não faz isso – disse a Japa. Se fosse a Lindinha, não digo nada.

Lindinha é a cachorra bassê de minha filha.

Como a falha era de dente de trás, fui trabalhar, desmarquei o horário com o dentista. À noite, observei o lixinho da pia com os restos da laranja chupada por mim no almoço. “Desgraçado do dente deve estar aí!” - pensei.

Como um vira-lata, fiz o serviço, vasculhei meu próprio lixo para reciclar minha prótese, e ela estava lá pronta para ir ao lixo geral, me dando um sério prejuízo financeiro.

Então, caro leitor, tiozão, tiazinha. Eu sei que lhe ocorreu algo parecido com seus dentes, mas você se fecha, não conta a ninguém. Assim, repito Fernando Pessoa:
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana,
Quem confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos.
Amo meus defeitos, porque eles são minhas idiossincrasias, por eles me personalizo. Então, caro leitor, deixe o Fernando Pessoa, resmungão, pra lá...

*Hélio Consolaro é professor, jornalista, escritor. Membro da Academia Araçatubense de Letras. Atualmente é secretário da Cultura.




Poema em linha reta
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu que verifico que não tenho par nisto neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo,
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu um enxovalho,
Nunca foi senão - príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana,
Quem confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde há gente no mundo?

Então só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)

2 comentários:

Anônimo disse...

Maravilhosa expressividade, hilária e verdadeira! Receba os meus aplausos caro professor. Só se pode esperar isso mesmo do seu tão valoroso talento literário. Essa cativante e grandiosa humildade da transparência nessas ações, é característica de grandes corações. Cordial abraço!

jhamiltonbrito.blogspot.com disse...

...depois sou eu o "veio".