AGENDA CULTURAL

26.3.11

Contumazes devoradores


Autor: Tito Damazo*
                                                           AO VERME
                                                                               QUE
                                                               PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES
                                                                        DO MEU CADÁVER
                                                                               DEDICO
                                                                  COM SAUDOSA LEMBRANÇA
                                                                                ESTAS
                                                                    MEMÓRIAS PÓSTUMAS
                                                                       
                                                                        Machado de Assis

            Aos olhos horrorizados da mulher havia que imediatamente incinerar os danificados e preservar os ainda não contaminados com forte dose de veneno!
            Apavorava-a ainda mais a constatação irrefutável de ser ali, naquele cômodo, asseado, limpo, dia sim dia não, com os mais modernos produtos de limpeza; limpo, higienizado por suas próprias mãos zelosas, às quais, diziam, todo cuidado parecia  pouco.
 Tinha por aqueles objetos a subjetiva estima de uma íntima relação afetiva e a pragmática consciência de que neles empregara grande soma de seus recursos, ao contrário de outros, que somavam propriedades rurais; outros que somavam propriedades urbanas; outros que somavam propriedades escolares; outros que somavam bois no pasto.
            Aquisições materiais cujas valorizações de mercadoria são inversamente contrárias às suas. Figuram e seguem vivas em meio à marcha valorativa de mercado. As suas acumulam-se, não são objetos de negociações e especulações da bolsa de valores. Um patrimônio encerrado em um cômodo, onde se empilham em prateleiras e, por mais que a mulher procure reordená-los, andam constantemente fora da ordem (assim como também estão “fora da nova ordem mundial”).
            E constatava mais claramente agora que esse confinamento e preservação de objeto completamente desprezado como capital de giro, não obstante a seu ver, certamente ingênuo e ilusório, se fizesse um bem inestimável, incalculável, em moeda corrente parecia ser, aos dias de hoje, um estúpido e suicida negócio.
            Essa ideia que o espicaçava há algum tempo parecia ter acabado de ganhar um novo aliado. Aliado que não pertencia a nenhuma ordem de setores da pulsante, dinâmica e refinada nova ordem mundial, cujo pantagruelismo insaciável é completamente inverso ao antropofagismo preconizado por Oswald de Andrade.
            Esse novo aliado tampouco tem a ver com os vermes que roeram as frias carnes de Brás Cubas e permanecem, vivíssemos, roendo a frias carnes de nós outros. A sua família é a dos insetos isópteros. Vermes devoradores de matérias vegetais.
            Radical defensor da vida sob quaisquer forma e espécie, não conseguira ficar (talvez de tão estupidificado) como sua mulher, enfurecidamente, a odiá-los. Não sabia qual, mas de alguma forma os cupins tinham uma missão a cumprir, a que lhes destinara a natureza. Inconformava-o e o decepcionara essa pantagruelista voracidade a que se entregavam aqueles cupins.
            Afinal, tinham, lá fora, comida à farta para servir à sua fome. Árvores de algumas espécies cujos galhos secos, folhas secas, cascas secas havia em abundância no quintal e certamente há décadas se prestavam a alimentá-los!
            Entretanto, não entendia por que agora, já que seu presumível pasto continuava o mesmo, resolveram devassar páginas e páginas de preciosidades armazenadas na prateleira. Se lá fora não houvesse comida, ao menos haveria uma explicação admissível.
            Seu lema panteísta, portanto, ficara em situação muito delicada, desautorizando-o, então, a assumir quaisquer posições impeditivas à determinação peremptória de sua mulher. Os livros danificados foram incinerados. Os demais, ainda intactos, mas tomados pelos cupins, foram empanzinados de cupinicida.
            Enquanto procedia o cupinicídio, desenxabido e espirituoso, dissera que, talvez, oswaldianamente, aqueles cupins houvessem assimilados grandes conhecimentos humanísticos dos quais os homens presentes andassem precisando.

* Tito Damazo, doutor em letras, professor universitário, escritor, membro da Academia Araçatubense de Letras e da UBE, Araçatuba-SP - damazo@terra.com.br   

Nenhum comentário: