De para-choque de caminhão

Hélio Consolaro*

Minha menina, como é difícil nascer e interpretar o mundo. Mundo é tudo aquilo que não sou eu. Algumas pessoas nascem, ouvem certinho tudo aquilo que os adultos falam, principalmente família, escola e igreja e são felizes vivendo o papel do outro, ou dos outros. Cidadãos cordatos, obedientes.

Digo “minha menina” porque foi minha aluna quando era bem jovenzinha, sinto-me responsável por você. Imagine! Para os adultos, as crianças não crescem. Viu? Quero ser diferente dos outros, mas sou traído por meus sentimentos.

Outras pessoas, minha menina, tornam-se rebeldes, querem ser originais, dão a cara para bater, apanham da vida sem que os direitos humanos sejam feridos e, às vezes, chegam à conclusão de que obedecer é melhor, mas os caminhos tortuosos que caminharam lhe deixaram  marcas e sabedorias, são seres pensantes. Não sei se mais felizes.

Então, menina, você parece que está se encontrando. Afinal, 35 anos são quase meia existência. Você tem momentos de rebeldia, às vezes, se torna camaleão para cavar subsistência. Já a vi pregando religiões esquisitas, militando em partidos (ora de direita, ora de esquerda). Define-se como artista de teatro, mas vestiu a máscara de uma personagem, representa-a ao vivo, em 3D.

Não gosto de dar conselhos, mas você, minha menina, precisa ouvir mais a voz de dentro, parar debaixo de uma árvore ou no ponto de ônibus mesmo, conversar consigo  mesma diariamente, perscrutar a alma. Alguns chamam essa voz de Deus, outros como o âmago de nosso ser, o ponto gerador de nossa existência. Tudo isso parece filosofia de para-choque de caminhão, mas não tenha preconceito, os ensinamentos nascem de fontes inesperadas.   

Cada um pode errar, erro advindo da ousadia, mas que isso seja verdadeiro. Da queda, tiremos a lição, levantar-se sempre é preciso. Como somos caminhantes, se faz necessário caminhar, fazer rastro.

Então, minha menina, você veio me contar de suas novas opções, entusiasmada. Tive vontade de lhe dar alguns palpites, apontar caminhos, mas me contive, não tenho esse direito, porque as lições precisam ser vividas, passar pelo fogo para temê-lo. Não é possível ter medo do fogo  apenas de ouvir falar  que ele é perigoso.

A  experiência de Deus, a experiência de vida é única,  não é possível comunicá-la plenamente. Eu posso passar o contentamento, a  tristeza que são minhas de ter tido  certas passagens  na minha trajetória, só isso,  não posso fazer delas conselhos.    

Minha menina, seja feliz. Ganhe asas. Todos os percalços não foram em vão, faça dos limões uma deliciosa limonada. Parece um chavão, mas eles, às vezes, contêm sabedoria. Chegue à velhice com orgulho do que fez, cheia de felicidade.

A pior coisa não é ser velho, ruim mesmo é concluir que poderia ter feito diferente. Mas os caminhos prontos não existem, cada pessoa tem diante de si uma floresta todos  os dias e ela precisa abrir a  picada, construir  a  clareira. Não havia outro caminho, cada um constrói o seu. Não há caminho a seguir.

Minha menina, quero vê-la sempre sorrindo. As pessoas nascem para a felicidade, às vezes, complicamos tudo. Seu sorriso enfeita ainda mais seu rosto. Não pense que podia ser diferente, não imagine que devia estar noutro lugar. Cada um é importante onde está; de um buraco, poderemos alcançar as estrelas.

*Hélio Consolaro é professor, jornalista, escritor. Atualmente é secretário municipal de Cultura de Araçatuba-SP.