AGENDA CULTURAL

21.4.12

A cultura da citação

 Revista Metáfora

Leia também: A arte de citar - de Pedro Maciel

A homenagem de outras atividades artísticas à literatura mostra uma vitalidade que condiz com os avanços dos índices d leitura no país.
Rodrigo Lombardi como protagonista de O Astro
 Um em cada quatro brasileiros não faz idéia do papel que a leitura pode ter em suas vidas (pesquisa Retrato da Leitura no Brasil, 2008). Se soubesse, talvez não deixasse escapar algumas das deferências e citações explícitas que obras de apelo popular têm feito à literatura nos últimos tempos.

Das lembranças que a novela que a novela das 9 da Globo, Insensato Coração, deixou aos fãs após seu fim em 19 de agosto, uma só será degustada por quem tem a literatura em seu horizonte de prazer: a reviravolta da protagonista Norma (Glória Pires) ocorre quando ela abandona o estado de pureza inicial ao ler Dostoeévski.

Na cadeia por crimes que não cometeu, constata o quanto a leitura a ajudara a ser menos inocente. E chega a declarar que, se tivesse lido antes, jamais teria sido enganada. Em abril, um dos principais pedidos do público à Central Globo de Atendimento ao Telespectador foi sobre os livros da biblioteca de Norma.

A biblioteca de Norma

No capítulo ll66 de Insensato Coração, Norma toma um exemplar de Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski, olha a capa e diz:
- Que livro pesado...
Jandira, sua colega de cela, responde:
- É grande, sim, revista é mais leve.
Norma esclarece:
- Não, eu tava falando que ele é denso, forte. Quando a gente lê, aprende mais sobre a vida.
Achava que sabia muita coisa, mas só agora comecei a entender melhor as pessoas. 

Até outubro será possível ver diálogos inteiros de O astro, também da Globo, pinçados de Jorge de Lima, Fernando Pessoa, Luís Vaz de Camões, William Shakespeare, Charles Baudelaire, Francisco Petrarca, Rainer Maria Rilke e John Donne. A minissérie de Alcides Nogueira e Geraldo Carneiro reciclou a novela de Janete Clair de 1977-78. De Baudelaire, por exemplo, há versos como “Queria mesmo era colher o grito pleno/ da tua alma cheia de tormentos”. As citações literárias ocorrem em hipnoses do protagonista Herculano Quintanilha  (Rodrigo Lombardi), em declarações românticas ou até em conversa de bandido.
 - Tem poesia para todos os gostos n’O astro. Fragmentos de Dante, Homero e Omar Dhayyan. Muito Shakespeare, sobretudo nas falas dos bandidos, que extraem de Ricardo III algumas citações. Há uma cena de Romeu e Julieta, de janeiro a julho - explica Carneiro.

Via satélite

O expediente, que nem sempre escapa do pastiche, foi o jeito de os roteiristas darem ao palavrório “melacueca” do original um ar de exceção palatável à plateia atual. É, principalmente, sinal da importância dada à leitura qualificada quando a cultura pop quer requintar sua prosa. A trama central, diz o roteirista, já admitia isso. Calcada em Hamlet, tem direito a regicídio, fantasma, casório e loucura do príncipe.
-As citações pipocam a toda hora. O bandidão adora encantar a amada com sonetos de Shakespeare, já disse uns três a ela, que aliás farão parte de um livro que vou lançar ano que vem, O discurso do amor rasgado, só com traduções de fragmentos do bardo – diz.   

Remissões como essas podem não se tornar arroz de festa na cultura industrial, mas jaó não se pode afirmar que seria surpresa se sua incidência aumentasse. Com esforço de governo, intelectuais e professores, setor privado e ONGs, os índices de leitura aumentaram no Brasil. Cada pessoa acima de 15 anos e três anos de escolaridade lia 1,8 livros/ano em 2001, Passou a 4,7 livros/ano em 2008, segundo a Retratos da Leitura no Brasil. É gente que já se tornou público de referências que em outras épocas  pareciam cifradas. Já pela pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro, divulgada no mês passado pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros e pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), o número de exemplares vendidos cresceu de 387 milhões (2009) para quase 438 milhões (2010). No ano passado, foram editados 54.754 títulos, um aumento de quase 25% em relação a 2009, sendo 18.712 obras novas.

Emulação

Países que aumentam seus níveis de leitura tendem a ter referências literárias consagradas na cultura. Foi assim que Camões terminou em raps da artista portuguesa Gisela Cañamero, do grupo Arte Pública, em Beja, na região do Alentejo, em Portugal. Desde 2004, ela já verteu 15 sonetos do autor par a o projeto multimídia Camões é um poeta rap.
Quase duas décadas antes, Renato Russo criara estranhamento no Brasil ao intercalar soneto  com o capítulo 13 da primeira Carta de São Paulo aos coríntios. Monte Castelo integrou disco do grupo Legião Urbana, em 1989. Os versos camonianos, no entanto, continuam a tilintar sem embaraço a cada renovação de público dos roqueiros.
A inspiração literária da música pop é, aliás, tendência antiga. Com o grupo Ira, por exemplo, virou música Os meninos da rua Paulo, de Ferenc Molnar. Já Amor pra recomeçar, de Frejat tem parceria com Maurício Barnos e Mauro Santa Cecília, é adaptação do poema Desejo, de Victor Hugo. The Cure comôs Killing na Arab com trechos de O estrangeiro, de Albert Camus. David Bowie criou 1984 e Radiohead, 2+2=5, ambos tributos a 1984, de George Orwell. The Police tornou conhecida Don’t stand so close to me a alusão a Lolita, de Vladimir Nabokov. Assim como Nirvana emplacou Scentless apprentice, inspirado em O perfume, de Patrick Süskind.  


Ter idéia de onde vem a referência literária de canções pode fazer diferença no ato de ouvi-las. As coisas fazem sentido mais rapidamente ou profundamente se sabemos as referências, mas ao mesmo tempo se precisa dela na fruição estética.
Sempre que ocorrem nos meios audiovisuais, referências à literatura se manifestam de forma atraente. Neil Gaiman, por exemplo, injetou nos quadrinhos de Sandman sua paixão pelos escritos fantásticos de G.K. Chesterton – nas páginas de seu HQ. Gaiman cita, por exemplo, o livro O homem que foi quinta-feira – um pesadelo. Já a graphic novel Liga extraordinária, de Alan Mooere, cria trama de fantasia na Londres de 1899, em que a rainha Vitória  recruta heróis de romances populares, como Dorian Gray, dr. Jeckyll e capitão Nemo

Intertextualidade

Em diversos campos da cultura, vemos a influência de obras criadas só para leitura. Tal diálogo tem o pomposo nome de intertextualidade, a articulação de textos num texto que é passagem direta ao conhecimento de outros mundos. E pode se tornar ainda mais recorrente com as indicações recentes dos hábitos de leitura do brasileiro.
A percepção brasileira de que ler obras literárias leva à ascensão social ganhou materialidade.  Um em cada três brasileiros garante conhecer alguém que “venceu na vida” graças à leitura, aponta a Retrato da Leitura no Brasil. Dos gêneros mais lidos, embora a Bíblia e os livros didáticos continuem líderes (45% e 34% da população brasileira, segundo a edição de 2008 da pesquisa), a leitura de romances  (32%), de literatura infantil (31%) e de poesia (28%) é maior que a de HQ e livros religiosos, ambos com 27% da preferência.
Em tal contexto, soariam como ruído ao público referências como a de Lisa Simpson folheando  Folhas de relva, de Walt Whitman, num episódio de Os Simpsons, exibido em junho nos EUA?    
Difícil saber. Muita gente não se cansa de dizer que a literatura está em crise; de criação, forma e inovação, mas a alma dos personagens da alta literatura e dos autores pode estar por toda a parte, e surgir quando menos de espera. Para percebê-la convém estar em dia com a literatura.

Aspas virtuais
Internet dá fôlego à cultura da citação
por  Edgar Morano

Wikiquote – braço da Wikipédia, a Wikiquote é uma enciclopédia colaborativa de citações e pensamentos que facilitam a busca de citação desejada: http: //PT.wikiquote.org/wiki
ThinkExist – um dos mais amplos acervos de citações em inglês. Exibe de graça até 4 páginas de resultados por busca: HTTP://www.thinkexist.com
O citador – citações lusófonas e textos adicionais sobre aforismos:  http://www.citador.pt
Frases literárias (Twitter) – frases e aforismos são postados aos milhões todos os dias no microblog. O recurso retuíte faz com que não só os autores famosos sejam ciados, o que permite ao internauta contribuir com ciações: HTTP://twitter.com/Literatuitando
Fernando Pessoa – alimentado por admiradora do poeta com trechos de sua obra: HTTP://twitter.com/FernandoPessoa

Nenhum comentário: