Revista Metáfora
Leia também: A arte de citar - de Pedro Maciel
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A homenagem de outras atividades artísticas à literatura
mostra uma vitalidade que condiz com os avanços dos índices d leitura no país.
Rodrigo Lombardi como protagonista de O Astro |
Um em cada quatro brasileiros não faz idéia do papel que a
leitura pode ter em suas vidas (pesquisa Retrato da Leitura no Brasil, 2008).
Se soubesse, talvez não deixasse escapar algumas das deferências e citações
explícitas que obras de apelo popular têm feito à literatura nos últimos
tempos.
Das lembranças que a novela que a novela das 9 da Globo,
Insensato Coração, deixou aos fãs após seu fim em 19 de agosto, uma só será
degustada por quem tem a literatura em seu horizonte de prazer: a reviravolta
da protagonista Norma (Glória Pires) ocorre quando ela abandona o estado de
pureza inicial ao ler Dostoeévski.
Na cadeia por crimes que não cometeu, constata o quanto a
leitura a ajudara a ser menos inocente. E chega a declarar que, se tivesse lido
antes, jamais teria sido enganada. Em abril, um dos principais pedidos do
público à Central Globo de Atendimento ao Telespectador foi sobre os livros da
biblioteca de Norma.
A biblioteca de Norma
No capítulo ll66 de Insensato Coração, Norma toma um
exemplar de Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski, olha a capa e diz:
- Que livro pesado...
Jandira, sua colega de cela, responde:
- É grande, sim, revista é mais leve.
Norma esclarece:
- Não, eu tava falando que ele é denso, forte. Quando a
gente lê, aprende mais sobre a vida.
Achava que sabia muita coisa, mas só agora comecei a
entender melhor as pessoas.
Até outubro será possível ver
diálogos inteiros de O astro, também da
Globo, pinçados de Jorge de Lima, Fernando Pessoa, Luís Vaz de Camões, William
Shakespeare, Charles Baudelaire, Francisco Petrarca, Rainer Maria Rilke e John
Donne. A minissérie de Alcides Nogueira e Geraldo Carneiro reciclou a novela de
Janete Clair de 1977-78. De Baudelaire, por exemplo, há versos como “Queria
mesmo era colher o grito pleno/ da tua alma cheia de tormentos”. As citações literárias
ocorrem em hipnoses do protagonista Herculano Quintanilha (Rodrigo Lombardi), em declarações românticas
ou até em conversa de bandido.
- Tem poesia para todos os gostos n’O astro.
Fragmentos de Dante, Homero e Omar Dhayyan. Muito Shakespeare, sobretudo nas
falas dos bandidos, que extraem de Ricardo III algumas citações. Há uma cena de
Romeu e Julieta, de janeiro a julho -
explica Carneiro.
Via satélite
O expediente, que nem sempre escapa
do pastiche, foi o jeito de os roteiristas darem ao palavrório “melacueca” do
original um ar de exceção palatável à plateia atual. É, principalmente, sinal
da importância dada à leitura qualificada quando a cultura pop quer requintar
sua prosa. A trama central, diz o roteirista, já admitia isso. Calcada em
Hamlet, tem direito a regicídio, fantasma, casório e loucura do príncipe.
-As citações pipocam a toda
hora. O bandidão adora encantar a amada com sonetos de Shakespeare, já disse
uns três a ela, que aliás farão parte de um livro que vou lançar ano que vem, O
discurso do amor rasgado, só com traduções de fragmentos do bardo – diz.
Remissões como essas podem não
se tornar arroz de festa na cultura industrial, mas jaó não se pode afirmar que
seria surpresa se sua incidência aumentasse. Com esforço de governo,
intelectuais e professores, setor privado e ONGs, os índices de leitura
aumentaram no Brasil. Cada pessoa acima de 15 anos e três anos de escolaridade
lia 1,8 livros/ano em 2001, Passou a 4,7 livros/ano em 2008, segundo a Retratos
da Leitura no Brasil. É gente que já se tornou público de referências que em
outras épocas pareciam cifradas. Já pela
pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro, divulgada no mês
passado pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros e pela Câmara Brasileira
do Livro (CBL), o número de exemplares vendidos cresceu de 387 milhões (2009)
para quase 438 milhões (2010). No ano passado, foram editados 54.754 títulos,
um aumento de quase 25% em relação a 2009, sendo 18.712 obras novas.
Emulação
Países que aumentam seus níveis
de leitura tendem a ter referências literárias consagradas na cultura. Foi
assim que Camões terminou em raps da artista portuguesa Gisela Cañamero, do
grupo Arte Pública, em Beja, na região do Alentejo, em Portugal. Desde 2004,
ela já verteu 15 sonetos do autor par a o projeto multimídia Camões é um poeta rap.
Quase duas décadas antes,
Renato Russo criara estranhamento no Brasil ao intercalar soneto com o capítulo 13 da primeira Carta de São
Paulo aos coríntios. Monte Castelo
integrou disco do grupo Legião Urbana, em 1989. Os versos camonianos, no
entanto, continuam a tilintar sem embaraço a cada renovação de público dos roqueiros.
A inspiração literária da música
pop é, aliás, tendência antiga. Com o grupo Ira, por exemplo, virou música Os meninos da rua Paulo, de Ferenc
Molnar. Já Amor pra recomeçar, de
Frejat tem parceria com Maurício Barnos e Mauro Santa Cecília, é adaptação do
poema Desejo, de Victor Hugo. The
Cure comôs Killing na Arab com trechos
de O estrangeiro, de Albert Camus.
David Bowie criou 1984 e Radiohead, 2+2=5, ambos tributos a 1984, de George Orwell. The Police
tornou conhecida Don’t stand so close to
me a alusão a Lolita, de Vladimir Nabokov. Assim como Nirvana emplacou Scentless apprentice, inspirado em O perfume, de Patrick Süskind.
Ter idéia de onde vem a
referência literária de canções pode fazer diferença no ato de ouvi-las. As
coisas fazem sentido mais rapidamente ou profundamente se sabemos as
referências, mas ao mesmo tempo se precisa dela na fruição estética.
Sempre que ocorrem nos meios
audiovisuais, referências à literatura se manifestam de forma atraente. Neil
Gaiman, por exemplo, injetou nos quadrinhos de Sandman sua paixão pelos
escritos fantásticos de G.K. Chesterton – nas páginas de seu HQ. Gaiman cita,
por exemplo, o livro O homem que foi
quinta-feira – um pesadelo. Já a graphic novel Liga extraordinária, de Alan Mooere, cria trama de fantasia na
Londres de 1899, em que a rainha Vitória
recruta heróis de romances populares, como Dorian Gray, dr. Jeckyll e
capitão Nemo
Intertextualidade
Em diversos campos da cultura,
vemos a influência de obras criadas só para leitura. Tal diálogo tem o pomposo
nome de intertextualidade, a articulação de textos num texto que é passagem
direta ao conhecimento de outros mundos. E pode se tornar ainda mais recorrente
com as indicações recentes dos hábitos de leitura do brasileiro.
A percepção brasileira de que
ler obras literárias leva à ascensão social ganhou materialidade. Um em cada três brasileiros garante conhecer
alguém que “venceu na vida” graças à leitura, aponta a Retrato da Leitura no
Brasil. Dos gêneros mais lidos, embora a Bíblia e os livros didáticos continuem
líderes (45% e 34% da população brasileira, segundo a edição de 2008 da
pesquisa), a leitura de romances (32%),
de literatura infantil (31%) e de poesia (28%) é maior que a de HQ e livros
religiosos, ambos com 27% da preferência.
Em tal contexto, soariam como
ruído ao público referências como a de Lisa Simpson folheando Folhas
de relva, de Walt Whitman, num episódio de Os Simpsons, exibido em junho nos EUA?
Difícil saber. Muita gente não
se cansa de dizer que a literatura está em crise; de criação, forma e inovação,
mas a alma dos personagens da alta literatura e dos autores pode estar por toda
a parte, e surgir quando menos de espera. Para percebê-la convém estar em dia
com a literatura.
Aspas virtuais
Internet dá fôlego à cultura da
citação
por Edgar Morano
Wikiquote – braço da Wikipédia,
a Wikiquote é uma enciclopédia colaborativa de citações e pensamentos que
facilitam a busca de citação desejada: http: //PT.wikiquote.org/wiki
ThinkExist – um dos mais amplos
acervos de citações em inglês. Exibe de graça até 4 páginas de resultados por
busca: HTTP://www.thinkexist.com
O citador – citações lusófonas
e textos adicionais sobre aforismos: http://www.citador.pt
Frases literárias (Twitter) –
frases e aforismos são postados aos milhões todos os dias no microblog. O
recurso retuíte faz com que não só os autores famosos sejam ciados, o que
permite ao internauta contribuir com ciações: HTTP://twitter.com/Literatuitando
Fernando Pessoa – alimentado por
admiradora do poeta com trechos de sua obra: HTTP://twitter.com/FernandoPessoa
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