Hélio Consolaro*
Numa
tarde de sábado, com as ruas da cidade fazendo a sesta, vou com meu carro
deslizando num asfalto lisinho feito por um prefeito de esquerda. Orgulho de
todos nós. Esquerda? Existe direita?
Eu ia para uma convenção partidária numa chique cervejaria, ouvindo “Efêmera”, de Tulipa Ruiz, no pen-drive. Músicas puxadas da internet. “Para não dizer que não falei das flores” era apenas uma referência temporal bem longínqua.
As
noites mal-dormidas em colchonetes, sobre pisos de salas de aula fedorentas de
escolas públicas ficaram para trás, discursos inflamados foram abandonados. O
ufanismo era a tônica. O sindicato agora cuida de planos de saúde e ações
judiciais, e as assembléias sindicais ocorrem em hotéis de cinco estrelas.
Prestador de serviço.
A
música “Efêmera” trazia um ritmo agradável, ouvida por uma juventude com outras
preocupações e modos. A cantora deu seu show no teatro municipal Castro Alves,
antigo Intec, onde os antigos artistas de Araçatuba, em semana anterior, com
cabeças calvas, rugas e cabelos brancos cantaram músicas de protestos, numa
sessão saudosista denominada “Intecenfim”.
Era
uma liberdade diante de prato de comida de quem nunca havia passado fome,
porque comer parecia muito normal. Ser livre era uma coisa natural, liberdade
para a nova geração não era uma conquista, parecia uma dádiva do universo.
Talvez, o sonho havia chegado e eu nem percebera.
Tulipa
Ruiz lotou o mesmo teatro de jovens, que queriam (não foi permitido, mas também
não protestaram, obedeceram) tomar cerveja e ficaram de pé defronte ao palco.
Queriam lazer. Ideologia, me dê uma para viver.
OUÇA A MÚSICA "IDEOLOGIA", CAZUZA
OUÇA A MÚSICA "IDEOLOGIA", CAZUZA
A
convenção estava pintada de camisetas e bandeiras vermelhas, um resquício, como
o dedinho dos pés. Não havia barbudos, cabeludos nem bichos-grilos. Lotavam a
plateia uma classe C emergente, gente simples querendo consumir, com discursos
para melhorar a vida. Um velhinho saiu com um discurso ideológico, pouco
aplaudido, quase vaiado. Ninguém reivindicou igualdade, apenas mais espaço de
consumo na economia de mercado.
Não
havia agentes secretos, espiões. O governo federal era muito favorável àquela
convenção, era do mesmo partido. Câmeras digitais faiscavam, todos queriam
tirar foto ao lado do grande líder. Câmeras de televisão colhiam imagens
avidamente para compor o programa eleitoral de televisão.
Havia
uma fila de outros partidos apoiando as bandeiras vermelhas. Não havia dedo
duro, só não podia dar sopa para o adversário. O eufemismo era a linguagem
predominante, nada de hipérboles. A vitória era a grande perseguida.
Devido
ao barulho excessivo, dois velhotes foram tomar cerveja num bar ao lado,
estavam enfadados. Falavam de um passado em lados diferentes.
Agora estavam na mesma convenção.
De
volta, ainda ouvindo Tulipa Ruiz, fui me perguntando: vencemos ou fomos
vencidos? Ou nesta vida não há vencedor, apenas interação? Nem a socióloga da
USP tem a resposta.
*Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Atualmente é secretário municipal de Cultura de Araçatuba.
Um comentário:
Caríssimo Hélio, como sempre, suas crônicas me abrem muitas idéias de respostas. Como sempre, copiei para responder depois porque os compromissos com o trabalho não contabilizado me chama. Nessa cruzado, caríssimo, eu que antes estava desse mesmo lado seu, me considero hoje, vencida. Vencida pela decepção. Fui mais feliz antes de 2003... Nessa época ainda possuíam ideais... quebraram-se como de resto os sonhos e ontem as vidraças do STF. Hoje repito Neruda: "no meio da noite me pergunto: o que será de meu país"?
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