O que é ser prefeito? Na visão tradicional, tratava-se
de um tipo de síndico da cidade, que assegurava que o nosso lixo fosse retirado
em tempo, que a fonte luminosa na praça funcionasse, que os bancos de praça
estivessem limpos e acolhedores para os namoros preguiçosos do entardecer. A
função de prefeito, na realidade, podia se resumir à cosmética urbana.
O relativo sossego
destes tempos foi transtornado. Se antes o grosso da população vivia na área
rural, cuidando de si mesmo, enquanto as cidades eram basicamente povoadas por
camadas mais prósperas, com a expulsão das populações do campo - resultado desta
estranha mistura de velhos latifúndios e de novas tecnologias - as cidades se viram cercadas
de amplas periferias carecendo de infra-estruturas, de emprego, de serviços
sociais.
Entraram assim na ordem do dia as políticas de saneamento
básico, de serviços essenciais, de construção de escolas. No campo, uma
família resolve os seus próprios problemas de lixo, de água, de combustível, de alimentação. Com a
urbanização acelerada, as famílias passaram a necessitar de redes de energia,
telecomunicações, água, ruas e transporte. O consumo individual foi substituído
em grande parte por consumo coletivo, e gerou-se assim a necessidade do
prefeito “empreendedor”, que constrói, organiza. E tomou-se importante a opção
política do prefeito: há os que passaram a proteger os núcleos urbanos antigos,
os bairros prósperos, da “barbárie” da pobreza. E há os prefeitos responsáveis
(minoria, infelizmente) que entenderam que a única forma de ter cidades com qualidade de vida seria investir no
lado pobre, para equilibrar a cidade. Criou-se a figura do prefeito preocupado
com o social, com a
inversão de prioridades.
Outro processo veio perturbar o cenário: com a abertura
econômica, as novas tecnologias de comunicação e informação, e a globalização generalizada das atividades
econômicas, chegaram novos desafios, pois não adianta fazer uma política
social se não há empregos, e não haverá empregos se não houver uma política de
desenvolvimento. De certa forma, o universo do prefeito ganhou nova complexidade:
é necessário, além da cosmética urbana, do social e das infra-estruturas, tornar a cidade atraente
para atividades econômicas, formar e requalificar a mão-de-obra, articular
interesses diversificados.
Passa-se a compreender que a cidade não é um simples
universo polarizado de ricos e pobres, e menos ainda um universo horizontal
de cidadãos, mas uma estrutura complexa de interesses comerciais e financeiros,
patronais e sindicais, rurais e urbanos, diversificadøs segundo os bairros,
segundo os segmentos sociais, segundo a inserção ou exclusão, relativamente
aos processos produtivos.
E surge o estilo correspondente de prefeito. Não é mais
o grande técnico (chegou-se a falar de “gerente de cidade”, figura importada
das propostas norte-americanas dos anos 1920), e sim o articulador dos
chamados “atores sociais”, pessoa com visão social aberta, conhecedora de
formas mais democráticas de gestão participativa (transparência financeira,
orçamento participativo e outras iniciativas), atenta às inovações urbanas que
surgem em diversas partes do planeta - parcerias entre a administração pública, as empresas e
o terceiro setor, por exemplo - promotora de articulações inovadoras (consórcios
intermunicipais de saúde, etc.)’ dinamizadora do capital social (conselhos de
saúde ou de educação, conselhos municipais de desenvolvimento). Em suma, um organizador
político onde o político já não se reduz ao partidário. Trata-se de gerir de
forma integrada uma realidade sócio-econômica complexa e dinâmica.
E para completar esta tipologia de prefeitos, resta o
dinossauro. Ele estufa o peito e bate com força para proclamar que vai acabar
com a criminalidade na marra, que vai prender os marajás, que vai reconstruir
toda a cidade gerando inúmeros empregos, e assim por diante. Na prática, o
modelo básico de gestão dos dinossauros consiste na construção de grandes
obras muito visíveis, que se inauguram com pompa. O esquema é simples, e nada
melhor do que um exemplo. A canalização de um córrego vai custar R$ 180
milhões. Sete grandes empreiteiras se reúnem em torno de um cafezinho.
Lembram-se de quem fez o último viaduto ou o
último túnel, e
atribuem a obra a quem é da vez. Este informa aos seus colegas, por exemplo, que vai cobrar R$ 600
milhões. No dia da licitação, há sete envelopes lacrados. Os sucessivos
envelopes, uma vez abertos, apresentam propostas muito caras, de R$ 700 ou R$
800 milhões. Até que aparece a mais barata, de R$ 600 milhões, por acaso. Esta
proposta ganha, o que é ótimo para o município.
Como o custo real é da ordem de R$ 180 milhões, R$ 420
milhões serão distribuídos entre amigos, advogados, empreiteiras, jornais ou
televisões locais. Uma parte significativa será guardada, naturalmente, para
assegurar a eleição seguinte. E tudo é rigorosamente legal, pois são as leis
de mercado e ganhou a melhor proposta.
Forma-se assim a
quadrilha, que reúne o político corrupto, as empreiteiras, a mídía e o Judiciário
coniventes. Segundo muitos prefeitos, a fórmula é imbatível. O essencial é ter
um prefeito que saiba bem estufar o peito e grite bem alto contra os ladrões.
E é preciso ter, também, uma população assustada e mal-informada. O “saudoso”
Al Capone já aconselhava aos seus amigos: “Para que roubar, se há tantas
maneiras legais de ser desonesto?”
*Ladislau Dowbor é professor titular da PUC de São Paulo e da Universidade Metodista de São Paulo, ex-secretário de Negócios
Extraordinários da Prefeitura paulistana e
consultor de diversas agências da ONU.
Nenhum comentário:
Postar um comentário