A VELHA RAPSODA*
Entrevista de
Cora Coralina à Dalila Teles Veras
A “Intelectual
do Ano” que, no próximo dia 20 [20/10/1984]estará recebendo o Troféu Juca Pato, fala da
láurea e de sua poesia
Fala de longe
a velha rapsoda. (Cora Coralina, “Sou raiz”)
Aqui estou, engasgada, abraçando esta pequena e
frágil criatura que já viveu quase um século, de mãos incrivelmente marcadas
pelo tempo, mas de um olhar vivíssimo e
sábio, de voz firme e pausada, cada palavra parecendo ser degustada como quem
experimenta um dos famosos doces, como quem pesa para colocá-la num poema, no
verso mais adequado.
Pela segunda vez encontro-me com Cora coralina. Na
primeira, descompromissadamente, levava-lhe um poema que fiz em sua homenagem.
Desta vez, acorrendo a um chamado seu feito através de sua neta Maria Luísa, na
casa da qual costuma hospedar-se em São Paulo, e que, nos últimos tempos, vem
organizando os compromissos e a agenda da escritora. Queria saber “coisas do
Juca Pato”, quem foram seus eleitores, de que Estados tinham vindo os 430 votos
que a elegeram “Intelectual do Ano”.
Não resisto à tentação
de registrar – com exclusividade, já que sua generosidade assim o permite – as
impressões da primeira mulher a receber o título de “Intelectual do Ano” –
Troféu Juca Pato, láurea que há 22 anos é outorgada pela União Brasileira de
Escritores e conta com o patrocínio da “Folha”, e que tem premiado os maiores
nomes das letras nacionais.
- O que significa para você, como mulher e como poeta, o título de
“Intelectual do Ano”?
- Esta vitória tem pra mim o significado de uma consagração de todo meu
País, que se movimentou para isso, e aqui vamos contar, além dos eleitores,
também os torcedores. Foi o máximo que eu podia esperar no fim de minha vida
literária. Estou radiante porque reconheço os valores de meus companheiros que
pleitearam comigo a posse do Troféu. Agradeço de todo coração a votação que
veio dos Estados mais longínquos, como
Ceará, Amazonas, Acre, Piauí e outros. Significa também a vitória da mulher,
que sai do seu apagamento e vem competir com os homens, levando a palma da
vitória.
-Cora, qual a sua definição de intelectual?
- Intelectual, homem ou mulher, é aquela pessoa dotada de maior
sensibilidade para aprender os lados da vida que parece destituídos de menor
valor e que os vai traduzindo numa linguagem poética, literária, exaltando
aquela outra face que escapa aos demais.
Mudaram os padrões ou
os intelectuais, eu me pergunto? Por que então Cora? Por que esta simples
mulher, que sempre cantou sua pequena aldeia, no interior do Brasil? Por que
uma poeta, e mulher? Seria pelo fato de ter vivido 95 anos, pela sua
fragilidade física e simpatia comovedoras que tantos escritores de todo o
Brasil mandaram seu voto para Elegê-la “Intelectual do Ano”? Não, não creio.
Esta singular escritora, de sensibilidade e perspicácia invulgares, Doutora
Honoris Causa pela Universidade Federal de Goiás sem nunca ter freqüentado os
bancos de uma Universidade, não pode ser enquadrada nos padrões convencionais
deste nosso século. Cora “traz consigo todas as idades” e toda poesia possível,
em seu estado mais verdadeiro, brotando dos mais fundos rincões da vida.
- Cora, sabemos que você editou seu primeiro livro aos 65 anos. A poesia
aconteceu com mais intensidade antes ou após a publicação em livro?
- Na verdade, a publicação de meu primeiro livro pela José Olympio
trouxe pra mim maior estímulo.
- Você declarou numa entrevista que hoje o jovem publica muito
facilmente; mas então admite que a publicação estimula o escritor?
- Estimula a escrever mais e melhor, pois a maior dificuldade de um
escritor, o maior desafio, é escrever bem.
- E a crítica, como você a encara?
- Desde que construtiva, estimula constantemente. Talvez mais do que a
própria publicação, porque a crítica chama a atenção para o autor e, sobretudo,
mostra erros e falhas.
Quem leu seus livros e
sentiu a tremenda força telúrica que Cora transmite através de sua palavra
poética, sabe que ela dá a cada palavra, aparentemente (e só aparentemente)
simples, o seu peso justo e insubstituível, com a segurança e habilidade de
quem há muito aprendeu a lidar com ela.
Nem historiadora
Nem
memorialista
- E o próximo livro?
- Estórias (não vá esquecer que é sem “h”, minha menina) da Casa Velha
da Ponte. São crônicas memoriais da minha Cidade. Verdades e mentiras, porque
não sou historiadora nem memorialista, apenas e sempre a estória do cotidiano.
O cotidiano passado e a sua importância.
Aqui, a neta Maria
Luísa me cochicha que Cora vem trabalhando arduamente nesse livro, refazendo o
que não gosta, com a calma e a tranqüilidade de quem age como se o tempo não
existisse, importando somente o fazer agora. Há pouco tempo, encontrando-se
acamada, ela pilheriou com o médico pedindo-lhe que a tratasse bem, pois não
podia morrer agora, porque tinha que acabar o novo livro. Foi então que nos lembramos de
perguntar-lhe se tinha medo da morte.
- Não, em absoluto. Não acho
que ser velho signifique morrer antes dos demais. Idade não significa
exatamente morte. Há uma passagem bíblica que diz: “Na casa de meu Pai há
muitas moradas”. Vamos ver como serão essas outras.
Nem por um momento Ana Lins dos
Guimarães Peixoto Bretãs (Cora Coralina – “coração vermelho” -, como prefere
ser chamada – “Vaidade... Havia Anãs demais em minha cidade”) faz menção de
interromper o bate-papo, e então me animo a prosseguir.
- Você tem vindo
muito a São Paulo nos últimos anos. Esta São Paulo de hoje tem inspirado muito
a sua poesia?
- Na minha obra,
estou muito voltada para o passado de minha cidade, o meu meio familiar e
social, o meio humano. Minha cidade que, apesar de pequena, sem grandes
concentrações culturais, contém um mundo de recordações, que se prendem à minha
infância e adolescência e que eu retrato nos meus livros. Só algua coisa de São
Paulo, apesar da grande saga que o Estado oferece. A minha força tribal, as
minhas raízes, estão na minha cidade de Goiás Velho. Já a parte rural de meus
livros é de São Paulo, do tempo que passei no interior, voltada para as coisas
da terra. Essa parte devo a São Paulo.
- Cora, o que
você diz do comparecimento maciço dos escritores goianos na votação do Juca
Pato?
- É o
reconhecimento do meu Estado, e seria incrível que lês deixassem de prestigiar
um elemento seu quando todos os outros Estados disseram presente.
- Mas, você
soube que o Secretário de Cultura de Goiás votou em Geraldo Mello
Mourão?
- Eu soube
também que ele tomou umas boas ripadas por isso.
Para finalizar, Cora quem é que você
gostaria que estivesse presente à entrega do Juca Pato?
- Os meus
parentes, a minha gente, a da velha Goiás, onde nasci e que até agora não me
enviou nenhuma manifestação. Lá tem uma Câmara, uma Prefeitura, uma Estação de
Rádio. Olha eu estou falando da cidade de Goiás Velho, não do Estado, que é
outra coisa! Gostaria também de ver na noite da entrega, todos aqueles que me
distinguiram com seus votos, vindos de tão longe.
Está na hora da velha guerreira dos
goiases descansar. Está na hora da doutora, poeta, tão tardiamente aclamada e
festejada, recolher-se, recobrar energias para mais um dia, não importa de que
tempo for.
Ana-Cora
levanta-se, cansada mas não vencida,
apanha as muletas (precisa delas há alguns anos, após ter fraturado um fêmur, e
a elas já dedicou uma ode) recusando a
ajuda da neta que esboça um gesto: “ não quero criar dependências”.
- FOLHETIM, Folha de São Paulo, 10 de
junho de 1984 -
2 comentários:
cora coralina e um exemplo de mulher simplicidade e poesia, nos dar prazer em ler.
Obrigado pelo post útil! Eu não teria chegado a este o contrário!
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