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Ao ler o conto "Obrigada pelo fogo", de F.Scott Fitzgerald, escritor norte-americano, na Folha de São Paulo, 12/8/2012, passei a entender melhor os fumantes, ou melhor, as pessoas. Apesar de ser escrito em 1936, parece uma realidade vivida atualmente no Brasil com a intolerância com os fumantes.
Recusado em 1936 pela "New Yorker", que o considerou muito fantástico e
diferente do estilo de Scott, este conto foi publicado pela primeira vez
na edição de 1º de agosto da revista.
Agora, chega ao leitor brasileiro pelas mãos de Vanessa Barbara, tradutora de "O Grande Gatsby" (Penguin Companhia)
F. SCOTT FITZGERALD
tradução VANESSA BARBARA
tradução VANESSA BARBARA
Aos 40 anos, a sra. Hanson era uma mulher bonita, mas um tanto apagada,
que vendia espartilhos e cintas em viagens de negócios fora de Chicago.
Por muitos anos seu território havia oscilado entre Toledo, Lima,
Springfield, Columbus, Indianápolis e Fort Wayne, portanto a
transferência para a região de Iowa""Kansas""Missouri fora uma promoção,
já que a empresa estava mais fortemente estabelecida a oeste de Ohio.
No leste, ela conhecia pessoalmente a clientela e sempre tomava um
drinque ou fumava um cigarro no escritório dos compradores, depois de
concluídos os negócios. Mas logo descobriu que, na nova área, as coisas
eram diferentes. Não só deixavam de lhe perguntar se ela desejava fumar
como, em várias ocasiões, quando ela mesma indagou se alguém se
importaria caso acendesse um cigarro, a resposta veio compungida: "Não é
que eu me importe, mas seria um péssimo exemplo para os empregados".
"Ah, claro, eu entendo."
Às vezes, fumar era importante para a sra. Hanson. Ela trabalhava muito e
era um jeito de fazê-la descansar e relaxar psicologicamente. Era viúva
e não tinha nenhum parente próximo para quem escrever à noite, e
assistir a mais de um filme por semana prejudicava seus olhos, de modo
que fumar tornou-se um importante sinal de pontuação na comprida
sentença de um dia na estrada.
Na última semana de sua primeira viagem pelo novo território, ela foi
parar em Kansas City. Era meados de agosto e estava se sentindo sozinha
entre seus novos contatos, portanto foi com alegria que encontrou, na
recepção de uma das empresas, uma mulher que havia conhecido em Chicago.
A sra. Hanson sentou-se enquanto aguardava ser anunciada e,
conversando, descobriu um pouco sobre o homem com quem iria se
encontrar.
"Ele se importaria se eu fumasse?"
"O quê? Meu Deus, sim!", a amiga afirmou. "Ele deu dinheiro para financiar a lei contra o fumo."
"Ah. Bem, obrigada pelo conselho "" obrigada mesmo."
"É bom você tomar cuidado por aqui", a amiga acrescentou.
"Principalmente com os maiores de 50 anos. Os que não estiveram na
guerra. Um homem me disse que quem participou da guerra nunca faria
objeção a um fumante."
Porém, em sua parada seguinte, a sra. Hanson topou com uma exceção. Ele
parecia um jovem muito agradável, mas tinha os olhos fixos no cigarro
que ela segurava entre os dedos, tanto que ela se viu obrigada a
apagá-lo. Foi recompensada quando ele a convidou para almoçar e, ao
longo do período, efetuou uma compra de valor substancial.
Depois disso, ele insistiu em lhe dar carona até o compromisso seguinte,
embora ela tivesse a intenção de procurar um hotel nas redondezas e dar
umas tragadas no banheiro.
Foi um desses dias repletos de espera --todos estavam ocupados ou
atrasados e, quando os clientes chegavam a aparecer, eram homens de
rosto duro que não toleravam a autocomplacência alheia, ou então
mulheres consciente ou inconscientemente comprometidas com as ideias
desses homens.
A sra. Hanson não acendia um cigarro desde o café da manhã e de repente
percebeu que era por isso que sentia uma vaga insatisfação ao fim de
cada reunião, não importando o quanto havia sido bem-sucedida
financeiramente.
Ela dizia: "Acho que cobrimos um mercado diferente. É tudo entretela e
látex, claro, mas nós realmente conseguimos juntá-los de um modo
diferente. O aumento de 30 por cento nas vendas deste ano fala por si
só".
Mas pensava consigo mesma: Se ao menos eu pudesse dar três tragadas,
conseguiria vender até aqueles corpetes antiquados com barbatanas.
Só havia mais uma loja para visitar, porém o compromisso estava marcado
para dali a meia hora. Daria tempo de passar no hotel, mas, sem nenhum
táxi à vista, ela caminhou pela rua, pensando: "Talvez eu deva parar de
fumar. Estou ficando viciada".
À sua frente havia uma catedral católica. Parecia muito alta, e de
repente ela teve uma ideia: se tantas nuvens de incenso haviam subido em
espirais até chegar a Deus, um pouco de fumaça no vestíbulo não faria a
menor diferença. Por que é que o Altíssimo iria se importar com uma
mulher exausta dando umas baforadas no vestíbulo?
Contudo, ainda que não fosse católica, o pensamento a incomodou. Fumar
era tão importante assim, mesmo correndo o risco de ofender tanta gente?
E ainda assim. Ele não se importaria, pensou com persistência. Na época Dele, ainda não haviam descoberto o tabaco...
A sra. Hanson entrou na igreja; o vestíbulo estava escuro e ela procurou um fósforo na bolsa, mas não encontrou nenhum.
Vou apanhar o fogo de uma das velas, pensou.
A escuridão da nave era cortada apenas por um facho de luz num dos
cantos. Ela caminhou pelo corredor lateral em direção ao borrão
esbranquiçado, então reparou que não era causado por velas e, em todo
caso, estava quase sumindo --um homem parecia prestes a apagar a última
lamparina a óleo.
"São oferendas votivas", ele disse. "Nós apagamos à noite. Acho que é
mais importante para quem ofereceu se as economizarmos para o dia
seguinte, em vez de mantê-las acesas a noite toda."
"Entendo."
Ele apagou a última chama. Não havia mais luz na catedral, salvos um
candelabro elétrico no teto e a lâmpada sempre acesa diante do sacrário.
"Boa noite", disse o sacristão.
"Boa noite."
"Suponho que você tenha vindo para rezar."
"Isso mesmo."
Ele entrou na sacristia. A sra. Hanson ajoelhou-se e rezou.
Fazia muito tempo que ela não rezava. Mal sabia para quê, então rezou
para seu empregador e para os clientes em Des Moines e Kansas City.
Quando terminou, olhou para cima. Uma imagem de Nossa Senhora a encarava
de um nicho a menos de dois metros de sua cabeça.
A sra. Hanson contemplou vagamente a imagem. Então ficou de pé e caiu,
exausta, na beira do assento. Em sua imaginação, a Virgem desceu, como
na peça "O Milagre", tomou seu lugar e vendeu espartilhos e cintas,
ficando tão cansada quanto ela. Então a sra. Hanson deve ter cochilado
por uns minutos. Acordou com a sensação de que algo havia mudado, sentiu
aos poucos um aroma familiar no ar, que não era de incenso, e sentiu
que seus dedos doíam. Então percebeu que o cigarro que trazia entre os
dedos estava aceso --e queimando.
Ainda sonolenta demais para pensar, ela deu uma tragada para manter a
chama viva. Então olhou para cima e viu o nicho vago de Nossa Senhora, à
meia-luz.
"Obrigada pelo fogo", ela disse.
Mas não lhe pareceu o suficiente, de modo que ela se ajoelhou, com a fumaça subindo em espirais do cigarro entre seus dedos.
"Muitíssimo obrigada pelo fogo", ela disse.
Um comentário:
Poxa, que lindo.Gostei.
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