Tharso Ferreira*
Como homenagem singela, pus uma vela acesa, que achei
solitária no fundo de uma gaveta antiga e me permiti verter uma lágrima antiga
de menino. Morreu Mohamed Dali.
Dali, meus caros, pra vocês que são jovens que não
conheceram os antigos dias dos anos sessenta, de tenebrosos ventos que abririam
brechas no futuro, eu digo, era um gênio de gênio extraordinário que o mundo em
seus arroubos concebeu.
Era um negro robusto, belo, que fazia as ondas do mundo se
quebrarem na areia social com sua fala de acinte, lá nos barulhentos anos
sessenta, tempos em que a asneira do politicamente correto ainda não tinha
tomado o mundo.
Ele dizia alto e em bom tom, “é difícil ser modesto quando
se é tão bom quanto eu”. Eram tempos de humanidade louca, destrambelhada,
êxtase total. Mulheres começando a se negar mulher, queimando sutiã nas praças.
A Apollo dando inéditas voltas na terra com gente dentro. Com o Vietnã
fervilhando de agente laranja e fazendo pilhas de soldados mortos. Os Beatles
mudando o barulho do mundo para sempre. Os antigos bandidos daqui aprovando o
AI-5 na calada da noite. Dali dava socos para ganhar a vida no meio desta
balbúrdia irascível, imprecisa, que os homens chamam de história.
Lembro-me de sua memorável luta na floresta, em
1974, no Congo de hoje, moldando o tempo do seu jeito, quando chegou correu na
rua feito moleque, divinal, no meio dos negros, “meus irmãos”, deu a eles o que
não tinham: um carnaval desatinado, feliz, cumprindo nas ruas de seus
antepassados seu destino monumental, sua verdade, sem ilusão, de gênio sem
antecessor, sem sucessor, isolado na história do boxe como um diamante negro,
único.
Nesta luta com Foreman se deixou bater como um mortal
qualquer até o sétimo round, sem desfalecimento, sem retroceder, até quando
quis e terminou a luta no oitavo assalto num “jab” triunfal de direita, fatal.
E transtornou a plateia de, “meus irmãos”, num urro de
esperança dos povos esquecidos do mundo. No tablado do ringue só se pode contar
consigo mesmo, foi o que disse.
Quando lhe perguntaram por que não acabara com a luta no
primeiro assalto, respondeu que aquele povo merecia um espetáculo. Foi uma das
lições do homem extraordinário que dava socos como vocação, mas se recusava a
participar de guerras. De bondade endurecida, “Nenhum Vietcongue me chamou de
crioulo”.
Descanse em paz guerreiro de garganta e punhos.
Diamante de alta resplandecência que nos deixou para sempre sem suas ondas de
franca brandura. Morarás na selva de mortos memoráveis, deixando nossas areias
secas. O mundo sem Cassius Marcellus Clay se torna um pouco mais desolado sem seus
milagres. Durma em paz meu antigo herói.
*Tharso José é escritor e ocupa uma cadeira na Academia
Araçatubense de Letras
Um comentário:
Gostei. Amigo Tharso, seu talento, que já se consagrou em belíssimos Contos, agora, neste texto, mostra-se também, fazendo-lhe um cronista de valor. Parabéns! E que venham mais. Aguardamos suas produções. Abraço. Deus continue lhe abençoando e protegendo.
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