Escritora de Araçatuba, Regina Ruth Rincon Caires; na foto, com sua neta Isis. |
Ela é contista que se classifica como contadora de história, seus contos são longos, seguindo no tamanho a tradição machadiana.
Ruth me concedeu esta entrevista porque nossa amizade
começou por seu marido, o professor Caires, ótimo professor de Inglês, lá na
Escola Estadual Prof. Genésio de Assis. Somos da mesma faixa etária e tivemos
nossos filhos na mesma época (Daniel, Daniela - Hélen e Hélder), quando era funcionária da extinta Caixa Econômica
Estadual. Assim, descobrir que ela escrevia, me foi uma boa surpresa. Atualmente, é aposentada como auditora fiscal da Receita Federal do Brasil.
Na década de 90, quando soube que eu dera para leitura dos alunos o seu conto
“O estrangeiro” e a convidei para conversar com eles, ficou muito feliz.
HÉLIO: Você sempre participa
de concursos de contos, participa de antologias, esse gênero literário é a sua
especialidade?
RUTH: Gosto de prosa curta. Não sou especialista em contos,
acho que sou uma contadora de histórias, só isso. Gosto de escrever sobre o que
vi ou ouvi, geralmente fatos antigos, coisas da infância. Além de falante ao
extremo, sempre fui muito observadora. Digo que, nos meus textos, realidade e
imaginação se confundem de tal maneira que nem mesmo eu sei dizer o que é real
e o que eu queria que fosse.
HÉLIO: Sempre vejo você participando de concursos literários,
participando de antologias. Já publicou livro solo? Quais? Se não, pretende?
Não, não tenho livro publicado. Tenho dois projetos. Um
deles é de um livro de contos, já enviei para um concurso, mas não foi
selecionado. Tenho uma maneira “antiga” de escrever, falo sobre coisas
“jurássicas” aos olhos de muitos leitores. A minha escrita é para o gosto de
pouquíssimas pessoas, eu compreendo. E não consigo mudar, não sei escrever
sobre o que não conheço. Sim, pretendo publicar um livro de contos, e vou
continuar apresentando o meu projeto em concursos literários. Fico satisfeita
quando sei que meus textos são lidos, esse é meu maior presente.
HÉLIO: Você venceu o concurso ESCRIBA, de Piracicaba. Venceu mesmo, foi
a primeira colocada. Com que sentimento recebeu a notícia?
RUTH: De início, não acreditei. Depois, aos poucos, percebi que
havia conseguido um grande marco para a minha escrita. O Prêmio ESCRIBA é muito
bem conceituado, os textos vencedores são de muita qualidade, e saber que eu
estava lá, foi maravilhoso.
HÉLIO: Em que momento da sua vida, você descobriu que tinha pendor para
a literatura?
RUTH: Nasci em Auriflama, ainda era uma vila, distrito. Ruas
de terra batida, casas de tábuas, mas a escola era de qualidade. Os professores
eram espetaculares, não que hoje não sejam. Mas era diferente, alguma coisa era
diferente. Tenho lembrança das aulas de Linguagem, fazíamos composições a
partir de gravuras que a professora escolhia. O Estado distribuía um “material
didático” que era um cavalete de madeira, feito uma folhinha-calendário, com
várias pinturas. Eram gravuras, não eram fotos. Esse cavalete ficava na
diretoria da escola, e servia a todas as séries. A minha alegria era quando a
professora pedia ao aluno maior e mais forte, que fosse buscar o cavalete para
a composição. Desde lá, tenho a mania de escrever histórias. Foi ali, naquelas
gravuras, que “conheci” o que era montanha, mar, navio...
HÉLIO: Percebo em seus contos que as personagens são sempre simples,
pessoas pobres. O que leva optar pela
pobreza?
RUTH: Hélio, escrevo sobre aquilo que conheço. Se são
personagens simples, acho que isso se deve ao meio em que vivi. Venho de
família de sitiantes, fazendeiros. Meus avós vieram da Europa durante a
Primeira Guerra, ainda adolescentes. Entraram por Santos, foram acomodados nas
estalagens e encaminhados para as fazendas de café, no interior de São Paulo.
As terras tinham pouca valia, e depois de muitos anos de trabalho, conseguiram
comprar uma fazenda em Auriflama. O café era produzido pela família toda, e
pelos meeiros, não eram empregados, eram “sócios” na produção. Tudo muito
rudimentar, muito simples, e eu cresci nesse meio. Na vila, em que depois
cresci, se as pessoas eram ricas, nós não sabíamos, não havia ostentação, todos
trabalhavam. Havia uma mistura de raças: turcos, sírios, libaneses, japoneses,
italianos, espanhóis. Na escola não havia qualquer distinção, todos eram
iguais, brincávamos todos juntos. Havia hierarquia apenas de respeito. Acho que
é isso.
HÉLIO: Você lê muito? Se sim, que tipo de leitura tem a sua
preferência?
RUTH: Não, não leio muito. Já li mais, hoje estou mais
lenta. Gosto de livros biográficos, de preferência. Gosto de literatura
brasileira, e nesses últimos anos tenho descoberto muitas coisas boas. Novos
autores e velhas preciosidades. Conheci a beleza da escrita de Maria Valéria
Rezende, descobri o encanto do trabalho de Orides Fontela, descobri a criação
incrível de Maura Lopes Cançado, e logo vou conhecer Luiz Ruffato. Em setembro,
no meu aniversário, meu filho me presenteou com “As cem melhores crônicas
brasileiras”, seleção de Joaquim Ferreira dos Santos, ainda não terminei a
leitura.
HÉLIO: Você acha que uma comissão julgadora de concurso literário pode
ser parcial ou ela julga segundo seus critérios?
Não acredito que haja parcialidade em comissão julgadora de
concursos literários. A comissão estabelece alguns critérios de acordo com a
modalidade a ser julgada. Existe a avaliação técnica: estrutura do texto,
correção gramatical e outros quesitos. A única diferenciação das comissões
julgadoras são as pessoas. Isso mesmo, as pessoas. Existe em cada um de nós,
por mais imparciais que julgamos ser, existe a subjetividade, o gosto, a
empatia pelo texto. Isso é inerente, é intrínseco, faz parte da essência de
cada indivíduo. Confesso que não leio nada de literatura fantasiosa, futurista,
não leio terror, não leio séries, não leio ficção científica. Se estivesse em
uma comissão julgadora, se tivesse de escolher entre um texto do meu gosto e um
texto que não aprecio, estando os dois no mesmo patamar de correção, certamente
eu escolheria aquele com o qual tenho mais identificação. E digo mais, ainda
bem que as comissões são plurais, diversificadas, pois, assim sendo, são receptivas
a todo o universo literário, a todas as criações.
Veja as premiações no
decorrer da vida literária de Regina Ruth Rincon Caires:
- Concurso Literário de Jales/SP – 1991;
(Contos: O estranho
Visitante - Floquinho)
- Concurso de Contos Cidade de Araçatuba/SP – 1995, 2011,
2013;
(Conto: O
Estrangeiro - 3.º lugar - Nacional)
(Conto: A Magia do
Circo - Menção Honrosa - Regional)
(Conto: Joana, só...
- 3.º lugar - Regional)
- Concurso de Contos de Ponta Grossa/PR – 2014;
(Conto: Legado de
Vida - Menção Honrosa - Nacional)
(Conto: O Louco do Faustino - Menção Honrosa -
Nacional)
- Prêmio Literário Cataratas (Foz do Iguaçu/PR) – 2014;
(Conto: Juvenal e o
Entregador de Pães - 4.º lugar - Nacional)
- Prêmio Alípio Mendes (Angra dos Reis/RJ) – 2015;
(Conto: O renascer
da mulher do Agripino - 6.º lugar - Nacional)
- Prêmio Professor Mário Clímaco – ALEPON (Ponte Nova/MG) -
2015;
(Crônica: De herói a
vilão - Menção Honrosa - Nacional)
- Prêmio ALIVAT – Academia Literária Vale do Taquari
(Lajeado/RS) – 2015;
(Conto: Banho de
Açude - 1.º lugar Infanto-Juvenil - Nacional)
- Concurso de Contos Cidade de Lins/SP – 2015;
(Conto: A gota
d’água - 2.º lugar - Nacional)
- Seleção Canal 6 Editora – Bauru/SP – 2015;
(Crônica: Luís Louco
– entre os finalistas para edição - Nacional)
- Prêmio Pérolas da Literatura – Guarujá/SP – 2015;
(Conto: Corte
“Americano”- 1.º lugar - Nacional)
- Prêmio SFX de Literatura – Vale do Paraíba/SP – 2016;
(Conto: Epitáfio - finalistas - Nacional)
- Prêmio Multiversos – Escrevendo Fantasia – 2016;
(Conto: Os
benzimentos de minha avó - selecionado para e-book - Nacional)
- Prêmio Literário Vicente Cardoso – Santa Rosa/RS - 2016;
(Conto: O Mendigo do
Viaduto do Chá - 2.º lugar - Nacional)
- Prêmio ESCRIBA 2016 – Piracicaba/SP;
(Conto: Epitáfio -
1.º lugar - Nacional)
- ALAP – Paranavaí – 1.º Concurso Doação de Órgãos – 2016;
(Crônica: Da doação
à aflição - Menção Honrosa - Nacional)
- III Concurso Cultural de Microcontos – IFECTSP – 2016;
(Microconto: Idade
da Inocência - 6.º lugar - Nacional)
- 12.º Concurso de Contos – UNIMEP Piracicaba – 2016;
(Conto: A Venda do
Seu Chico - 3.º lugar - Nacional)
- Prêmio Professor Mário Clímaco – ALEPON (Ponte Nova/MG) -
2016;
(Crônica: Dos amores
divididos e multiplicados - 2.º lugar - Nacional)
- I Prêmio ESCAMBAU de Microcontos – Fortaleza/CE – 2016;
(Microconto: Fuga -
2.º lugar - Nacional)
- Academia Ferroviária de Letras – Jacarepaguá/RJ – 2016;
(Conto: A velha
privada - Menção Honrosa - Nacional)
- 1.º Concurso de Poesia – Conceição de Mato Dentro/MG –
2016;
(Poema: Sou de lá...
- Menção Especial - Nacional)
- Prêmio Pérolas da Literatura – Guarujá/SP – 2016;
(Conto: A derradeira
viagem - 4.º lugar - Nacional)
--> (Crônica: Dos amores divididos e multiplicados - 7.º lugar - Nacional)
O conto EPITÁFIO, primeiro lugar em Piracicaba no Prêmio Escriba
Epitáfio
Regina Ruth Rincon Caires
Domitila sentou-se novamente ao lado do minúsculo túmulo,
debruçou o corpo sobre ele, como se o abraçasse. Fechou os olhos e sentiu uma
paz que havia muito não sentia. Não tinha mais cansaço, nem dor, não havia mais
agonia. Cumprira a missão. Tudo começou por ali, nos arredores daquela vila.
Ali viveram seus pais e ali elas nasceram. Tempos difíceis, sem qualquer
recurso. Lembrava-se dos olhos tristonhos da mãe ao falar sobre o encanto da
filha mais velha. Da vivacidade dos seus oito meses de vida, da alegria, da
pele rosada, dos olhos cristalinos, das coxas roliças. E, num repente, na
extensão de apenas um dia, ela se foi. Começou com um pequeno desarranjo,
julgado como reação pelo despontar dos dentes e no começo da
noite agravou-se com uma febre incontrolável. Mesmo com a débil claridade da lamparina,
ficava visível nas pequenas bochechas rubras
a intensidade da febre. E a prostração do amado corpinho evidenciava a
gravidade do quadro. Tudo muito rápido, sem tempo algum para qualquer acudimento.
Na verdade, acudimento não existia. Ali, naquele fim de mundo, não havia nada.
Ninguém além deles... Quanta dor quando perceberam que nada mais poderia ser
feito! A vida da filha havia partido. E,ainda com a madrugada escura, com o
fosco prateado do início da lua crescente, a mãe e o pai seguiram em direção à
vila, carregando nos braços e na alma aquela que seria a maior dor da vida. E
tudo foi feito. Nem sabiam como. A papelada foi providenciada, e afilha
enterrada. De início, uma pequena carneira de ripas fora erguida, mas depois o
pai providenciou
18 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016
uma lápide de tijolos com uma cruz de madeira. Tudo caiado
de branco. Dois anos depois, nasceu Domitila. Igualmente formosa, mas de saúde
delicada. Da mesma maneira, amada. Por ali viveram mais uns poucos anos e, esperançosos,
partiram para terras mineiras, dadas como promissoras para os roceiros.
Passaram por duas fazendas de café e na última ficaram até a morte do pai. Domitila
e a mãe se mudaram para Lavras, cidade mais próxima da fazenda onde viviam. Alugaram
três cômodos. Sobreviviam com a pensão que a mãe recebia pela morte do pai e
mais uns caraminguás que conseguiam defender com o trabalho de lavar e passar
roupas. A mãe já estava fisicamente debilitada. Idosa e judiada pela vida, pouco
ajudava. Mas, para Domitila, era uma companhia prazerosa. Sempre se deram bem.
Ambas possuíam almas nobres, eram mansas na lida com a vida. A rudeza e as
tristezas não as endureceram...Faziam ótima companhia uma à outra. Conversavam demoradamente
sobre todos os acontecimentos, sobre todas as saudades. Não havia nenhum planejamento
futuro. Apenas a esperança de um dia voltar à vila onde Virgínia estava
sepultada. Por opção, Domitila nunca se casou. De saúde frágil durante toda a
vida, padecia constantemente com agudas crises de asma. E assim os anos corriam
mansos, simples. O passeio semanal de mãe e filha era a missa domingueira na
capelinha próxima da casa em que viviam. Até que um dia a mãe se cansou. Não
queria mais comer, não queria mais tomar banho, não queria mais ir à igreja.
Prostrada, definhada, não conseguia mais sair da cama. E Domitila cuidava dela como
se cuidasse de uma criança. Com paciência, com dedicação, com todo o amor do
mundo. Mas os seus cuidados perderam a batalha para outra força. A morte levou
a mãe. Sentiu a mais dura solidão. Nunca pensara em ficar só. Não sabia como
administrar a vida assim, sem ouvir uma única voz na casa. Entristecida, idosa,
sem recursos para sobreviver, com a alimentação minguada e a falta de cuidados,
as crises de asma intensificaram-se a ponto de os vizinhos procurarem a
assistência social. E Domitila conseguiu, além de uma pensão vitalícia,
tratamento médico dispensado pela equipe do posto de saúde. Recuperou-se.
Passou a fazer uso diário de muitos medicamentos que minimizavam os vários problemas
de saúde desconhecidos até então. Passava os dias sem maiores preocupações,
apenas atenta aos horários e doses dos seus medicamentos. O único propósito, no
qual pensava e repensava ao longo do dia e durante as noites insones, era a
viagem de volta à vila onde nascera, a visita ao túmulo da irmã. Era um desejo,
uma missão. Prometera à mãe que não
morreria sem lá voltar. E essa era a vontade mais velada. Mesmo
com todos os cuidados, a saúde de Domitila ficava mais comprometida a cada dia.
E chegou um momento em que precisou deixar a casa que alugava. Foi levada para
um asilo. Lugar aconchegante, apinhado de velhinhos amigos, cheio de
cuidadores, de comida cheirosa, de cama limpa, de banhos refrescantes. Estava
feliz. O jardim era lindo, com todas as flores da infância. Muitas dálias,
cravos, rosas, flores de capitão...Domitila não se lembrava mais de qualquer tristeza.
Preenchia os seus dias com as atividades de pintura, de bordados, crochê, de
jardinagem. E conversava muito. Tantos amigos, tantas histórias. Umas alegres,
outras tristes... E nessas conversas soube que as pessoas idosas poderiam
viajar de ônibus sem pagar. Não sabia! Isso lhe abriu caminhos...A parca pensão
vitalícia não chegava às suas mãos.
Quase a totalidade ficava com a administração do asilo, o
que era muito justo, assim ela pensava. A ela eram repassados uns trocados a
cada mês, mas não tinha nem como gastar! Tinha tudo, tinha mais do que
precisava... O inverno chegou de forma inclemente. Frio que doía nos ossos e
que trouxe gripe a quase todos os idosos do asilo. Domitila ficou mal. Noites e
noites de febre causticante, de tosses agudas, de falta de ar. E sempre
amorosamente cuidada. Pedia silenciosamente por saúde, pedia para que fosse
dada a ela a possibilidade de viajar até a terra em que havia nascido. Era o
seu mais intrínseco e único desejo. Nada mais queria da vida. Só
isso...Alavancada pela missão a cumprir, recuperava-se, ainda que lentamente. A
febre cedera. Apenas a tosse a incomodava. Dava-lhe uma canseira danada no
peito, uma inapetência e atrapalhava o sono. Coma diminuição dos remédios,
passava mais horas
acordada e tinha mais tempo para maquinar a sua viagem.
Sabia que se falasse sobre isso com alguém seria desencorajada, e se a
administração porventura ficasse sabendo, ela seria impedida de ir de qualquer maneira.
Por isso tramava tudo silenciosamente. Dentro da cabeça, tinha toda a
trajetória a percorrer. Em detalhes... Sairia do asilo à noitinha, no horário em
que todos se recolhem. A sua companheira de quarto era dorminhoca. Bastava
entrar nas cobertas e
já estava ressonando. Iria bem agasalhada, levaria os remédios
na bolsa, juntamente com a carteira de documentos e o pouco dinheiro que
guardara porto do tempo. O nome da cidade ela sabia e usaria do direito das
passagens de idosos. Tudo arquitetado, cuidadosamente planejado. Domitila ainda
se sentia fraca, mas temia adoecer novamente e não ter a oportunidade de
realizar o desejo arraigado na alma e cumprir a missão que combinara com a mãe.
Não poderia fraquejar agora, talvez fosse essa a última, a única chance. No dia
escolhido, uma segunda-feira, reorganizou a bolsa, conferiu tudo, separou uma
troca de roupa e a acondicionou numa pequena sacola plástica. Colocou tudo
sobre os cobertores, no seu guarda-roupa. Naquele dia, saboreou o café da manhã
como nunca, passou os olhos em cada um dos amigos, conversou com muitos.
Almoçou e jantou com eles, numa alegria imensa. Já estava com saudades antes mesmo
de partir. E não pretendia demorar nessa viagem... Logo estaria de volta e
sabia que levaria uma bronca danada! Passeou pelo jardim olhando detalhadamente
cada flor, que agora eram poucas. Alio frio também havia castigado. Depois do
jantar, voltou ao quarto. Pegou uma folha de papel, uma caneta e começou a
desenhar umas letras. Mal sabia escrever, estudara muito pouco. Como ela mesma
dizia, não escrevia, apenas desenhava algumas letras. Acabou de escrever e guardou
a folha na bolsa. Não era um bilhete para a amiga de quarto. Cumpriria
religiosamente o que havia esboçado em sua mente. Não diria nada a ninguém. Ficou
sentada na cama, esperando a chegada da parceira. Quando ela entrou, foi direto
ao banheiro. Voltou já de camisola, pronta para entrar nas cobertas. E assim
fez. Domitila fez a oração da noite com ela e em seguida entrou no banheiro.
Tomou um banho demorado, estava imensamente feliz. Quando saiu, a companheira
já ressonava. Deixou a porta do banheiro entreaberta para clarear um pouco o
quarto. Pegou a melhor roupa, vestiu-se calmamente. Agasalhou-se bem, colocando
até uma touca preta de lã. Escolheu um cachecol bem longo, deu duas voltas no
pescoço. Calçou as grossas luvas, meias de lã e confortáveis sapatos. Pronto.
Estava preparada para partir. Aguardava apenas as luzes serem apagadas e o silêncio
envolver tudo. Para esperar, sentou-se novamente na cama. Com a pouca claridade
que passava pela fresta da porta do banheiro, olhou cada detalhe do quarto. Quatro
paredes que acolheram o seu sono nos últimos oito anos. Tempo bom... Olhava a
amiga que dormia santamente. Companheira de tantas orações, de tantas prosas,
de tantas risadas, de tantos dias bem vividos. Finalmente tudo quieto. Tudo
apagado. Domitila pega a bolsa, o saco plástico, olha para a amiga e dá um
sorriso. Apaga a luz do banheiro, abre a porta do quarto devagarinho, sai, e
com o mesmo cuidado a fecha. Segue passo a passo, com muito cuidado, como se
pisasse plumas. Não pode fazer qualquer barulho. Atravessa o pátio e sai pelo
portão dos fundos. O único que é fechado com trava somente por dentro. Imprudente,
irresponsavelmente vai deixar o portão destrancado, mas não há outro jeito.
Quando se vê na rua, tem vontade de rir. Está fazendo a
maior peripécia de toda a sua vida! A maior, não! A única! Olha a rua vazia,
escura, um vento frio, cortante. Ajeita os óculos, ergue a dobrado cachecol até
cobrir a boca e segue em frente. A rodoviária não fica longe. Basta andar por
mais alguns quarteirões, e a primeira etapa estará vencida. Chegando à rodoviária,
pede informações e dirige-se ao balcão da empresa de transporte que faz a rota.
Pede para comprar a passagem de idoso. É avisada de que o ônibus parte às 23h,
que irá até São José do Rio Preto e que lá terá que pegar outro ônibus para
chegar ao destino. Terá de esperar pouco mais de uma hora, mas está feliz.
Muito feliz. Sente um frio intenso. Acomoda-se em uma poltrona bem recuada,
fora da corrente de ar. Ali, quietinha, silenciosamente põe-se a rezar. Sente a
presença da mãe. Sabe que ela está ali, a guiá-la. E sente-se ainda mais feliz.
No horário marcado, o ônibus parte. Que sensação prazerosa!
Domitila nem tem conta de quantos anos faz desde a última viagem em um ônibus
de carreira. Ainda era menina, isso mesmo! As luzes do ônibus se apagam, a
poltrona ao lado está vazia. Nenhum idoso solicitou a outra passagem. Tem
espaço para colocar a bolsa e a sacola plástica. Sente muito frio, pensa que
deveria ter trazido amanta. Tinha pensado nisso, mas não queria fazer volume na
bagagem. Tenta pensar em outra coisa, esquecer o frio. Em vão... Em poucas
horas está tremelicando, e o ar frio do ônibus piora tudo. Percebe que está com
febre. Tem sede, muita sede. Quando o ônibus faz a primeira parada, já é madrugada,
Domitila pede ao motorista que lhe compre uma garrafinha com água. Além da sede
insana, quer tomar um remédio para baixar a febre. Sente muito frio e muito
desconforto. E, para piorar,o gentil motorista traz água gelada. Coitado, foi
tão solícito! Toma o remédio, bebe toda a água. Não consegue dormir. Não sabe
se pela ansiedade ou se pelo mal-estar, mas não prega os olhos. Na segunda parada,
desce cuidadosamente, vai ao banheiro, compra outra água, agora sem gelo e
volta ao ônibus. O dia amanhece e a encontra exausta. Sente-se cansada e
doente. A tosse começa a incomodar. Está gelada. Os pés, quase insensíveis.
Quando o ônibus chegou a São José do Rio Preto, Domitila perguntou ao motorista
como deveria proceder para comprar a outra passagem. Orientada, conseguiu a
passagem e precisava esperar pelo embarque para o seu destino. Depois de um
tempo, acomodada no assento reservado, e com o ônibus a caminho da vila da sua
infância, Domitila começou apensar nos amigos do asilo. A essa altura eles deveriam
estar alvoroçados com a sua falta, as freiras deveriam estar preocupadíssimas
com o seu sumiço.
Na volta ela explicaria, e a bronca seria retumbante. Dá um
sorriso. Sente saudades. A missão está quase finalizada. Falta muito pouco.
Sente um mal-estar tremendo, muito desconforto, uma fraqueza sem limite.
Percebe que a febre voltou, a tosse está se intensificando, dói-lhe o peito.
Deus! Esse ônibus precisa chegar logo ao destino. Talvez quando descer, tomar
um café com leite e comer um pão, tudo ficará bem. Quer chegar, isso é o que
deseja. Nada mais. Quando o ônibus chega à rodoviária da vila, Domitila começa
a chorar. Não sabe definir se chora de alegria ou de dor. Sente-se feliz, mas
fragilizada. Tem medo que as forças a abandonem. Já no saguão, vai ao bar, toma
um café reforçado e engole os remédios do dia. Vai ao banheiro. Antes de sair,
lava o rosto e passa uma escova nos cabelos. Segue a orientação do rapaz que a
leva ao táxi. Passando pelas ruas, tudo lhe é totalmente desconhecido, nada
familiar. Não tem lembrança de nada, era muito pequena
quando partiu. Uma vila que agora é uma cidade, e cheia de ladeiras. O táxi
sobe e desce, vira aqui e vira ali e em poucos minutos para diante do cemitério.
Uma entrada acanhada. Domitila passa pelo portão de ferro, olha adiante e vê
uma imensidão de área. Não há ninguém no atendimento. O cemitério é enorme.
Tudo muito diferente do que a mãe lhe descrevia. Os túmulos eram gigantescos,
modernos, suntuosos. Não havia nada da singeleza descrita pela mãe. Vai
caminhando em ziguezague, procurando com os olhos alguma evidência, algo
similar a todas as narrativas da mãe. A tosse impiedosa não a abandonava. Tinha
calafrios sucessivos. Andou muito, viu muitos túmulos de crianças, e procurava a
vida mente por uma lápide pequena, rústica, com uma cruz de madeira. Muito
cansada, sentou-se em um banco que ficava sob uma árvore, pediu a Deus que a orientasse, que abreviasse a sua busca. Estavamal,
sabia que iria precisar de cuidados médicos, mas não agora. Voltou à portaria,
havia um homem lá. Logo ele se apresentou como coveiro e responsável pelo cemitério.
Domitila contou a ele toda a sua história e o que buscava. Estendeu a ele o seu
documento e disse que o nome da irmã era Virgínia e que o sobrenome era o mesmo
dela. O homem nem pegou o documento. Declarou a ela que trabalhava ali havia mais
de 40 anos, que não existia qualquer registro anterior a 1950. Então Domitila
disse a ele que talvez o túmulo da irmã nem existisse mais. Mas ele garantiu a
ela que todos os corpos sepultados até1950 possuíam sepulturas perpétuas,
definitivas. Todos continuavam no mesmo lugar. Explicou que os túmulos mais
antigos ocupavam a área no entorno da capela. E, como o cemitério fora ampliado
posteriormente, os sepultamentos, quanto mais recentes, mais distanciados da
capela ficaram. Percebendo que Domitila não estava muito bem, o homem ofereceu
a ela uma água e um café. Ela aceitou, agradeceu e recomeçou a sua busca. Parou
junto à calçada da capela e procurava buscar na memória a direção que a sua mãe
havia descrito. Seguiu em linha reta, depois retornou ao mesmo lugar. Refez a
caminhada na diagonal. Muitas crianças sepultadas, muitas fotos, o que
simplificava a busca. O túmulo da sua irmã não tinha foto. Buscava um túmulo
simples, com uma cruz de madeira. E não conseguia encontrar. Sentia tanto frio,
tossia incessantemente, tinha vontade de deitar, mas estava ali, pronta a
realizar o seu desejo. Não recuaria, nunca...A tarde ia caminhando sem pena. E
ela não encontrava o túmulo da irmã. Prostrada, chorando baixinho, sentindo a
febre cada vez mais elevada, com a tosse a castigar-lhe o peito, retornou novamente
ao ponto de partida: a velha e minúscula capela. E desta vez seguiu sem rumo, novamente
ziguezagueando entre os túmulos. Tropeçava aqui, pisava em falso ali, já não
sentia os pés. O sol estava a descer, e ela continuava a busca. O encarregado
do cemitério tinha terminado o expediente. Pensou que Domitila tivesse
desistido, e se foi. Além dela, não havia mais ninguém por ali. Não tendo mais
forças para continuar, Domitila senta-se na estreita calçada de um túmulo.
Começa a chorar copiosamente. Sente-se doente, incapaz de seguir a caminhada, e
extremamente desolada. Não encontrou o túmulo da irmã. Olha o céu, o sol quase sumiu
por completo. Pensa na mãe. Olha em frente e depois volta os olhos para o lado.
Olha a lápide margeada pela calçada onde está sentada. Com muito esforço,
coloca-se de pé. É um túmulo pequeno, antigo, tem uma pequena elevação na
cabeceira comum buraco no centro. Percebe que aquele buraco não fora feito em vão. Sim, ali havia a cruz de madeira. Certamente
se desfez com o tempo. Sente que finalmente encontrou o túmulo da irmã. E
chora, chora como nunca havia chorado na vida. Chora gritado. Nem sabe por
quantos minutos... Estava exaurida. Domitila sentou-se novamente ao lado do minúsculo
túmulo, debruçou o corpo sobre ele, como se o abraçasse. Fechou os olhos e
sentiu uma paz que havia muito não sentia. Não tinha mais cansaço, nem dor, não
havia mais agonia. Cumprira a missão.Com a cabeça recostada na fria lápide e
com o rosto em brasa, Domitila tinha no pensamento afigura da mãe, dos amigos
do asilo, do pai. De repente o frio cessara, não havia desconforto, nem tosse,
nem dor no peito. Tudo ficara muito leve, flutuava...Na manhã, Domitila foi
encontrada. Sem saber o que fazer e se lembrando de toda a história contada por
ela, o coveiro conferiu a bolsa, procurou pelos documentos e viu uma folha de
papel dobrada, toda amassada. Abriu rapidamente o papel e nele viu desenhado:
QUERO FICAR AQUI. ESTE É O MEU LUGAR.
E assim foi feito.
4 comentários:
Obrigada, Hélio! Muito obrigada! Abraços...
Que texto maravilhoso, Regina! Irretocável! Singelo e comovente.
Li a entrevista por conhecer Rute. Frequentamos o curso de letras da Toledo no início da década de 70. Comecei a ler o conto Epitáfio e não parei até chegar ao final. Pareceu-me ouvir Rute me contando a história de Domitila...Obrigada, Rute! Beijo.
Obrigada, Tatiana! Obrigada, Cinira! Fiquei muito contente com a leitura de vocês... Abraços...
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