AGENDA CULTURAL

3.4.20

Outros Tipos de Vírus, por Tacilim Oréfice



            Não há nenhum lugar para qual olhamos e não vemos notícias sobre o Covid-19 – Corona, para os íntimos. O mundo todo só fala nisso. E, ao mesmo tempo, vemos líderes mundiais resistindo as exigências dos médicos e da OMS – Organização Mundial de Saúde –, para impedir o número de contágio e, consequentemente, de infectados e de mortos. Por que, nesse tempo de crise, vemos líderes tão falhos no cumprimento de seus deveres e, mesmo diante de fatos e pesquisas sérias, na resistência de admitir o que o mundo todo está experimentando na própria pele? Minha opinião é a de que houve, antes desta pandemia, outro tipo de vírus, entre outros citados adiante, muito pior e mais nocivo se espalhou pelo mundo. Um vírus silencioso, sorrateiro e sórdido: o vazio.
            Em vários níveis e diferentes camadas, o vazio tomou posse sorrateiramente não só dos corações das massas como de suas mentes. Poucos são as pessoas hoje em dia dispostas a parar e olhar para si e responder – com honestidade: “O que eu estou fazendo da minha vida?”.
            A consciência de si mesmo e de seus atos diante da sociedade, é ignorada completamente em função do cumprimento geral da opinião pública: “Se está pagando suas contas e não está faltando comida, não tem do que reclamar”. Ou seja, se as funções sociais e biológicas estão sendo cumpridas, não há problema. Vive-se e morre. A falta, muitas vezes, da crença de uma vida após a morte leva o indivíduo a banalização de seus atos. Se nada vai perdurar e “só se vive uma vez”, por que me preocupar com qualquer coisa? As vezes isso acontece de forma espontânea. A pessoa vai à igreja todos os dias ou tem uma crença enraizada em alguma religião, mas não toma consciência de suas atitudes ou das consequências da mesma. Como dizem: “Todo mundo quer ir para o céu, mas ninguém quer morrer”.
Ou seja, a necessidade de viver só é superada pelo medo da morte. Vive-se porque têm medo de morrer. E viver é trabalhar, comer, andar, beber, se divertir, reproduzir e aguentar o máximo possível até o final. O resultado disso é o tédio e o tédio diante da extensão do tempo, torna-se vazio e a total apatia do que se está fazendo consigo mesmo, com sua vida e com os outros. Assume-se a filosofia como objetivo de vida, mesmo oculto: “Os fins justificam os meios”.
            Como exemplo desta apatia temos a deterioração do humor como força catalizadora de mudanças sociais. O humor, antes, poderosíssima ferramenta das mídias para disseminar complexos conceitos críticos sobre as incongruências, tanto na sociedade como no governo de cada país, agora, com raras exceções, não passa de um desfavor a sociedade. O famoso “meme”, outro vírus da sociedade, não passa de uma distração para a maioria das pessoas. Elas acham graça, riem e compartilham, mas a força da mensagem se perde na multidão. A mensagem como força impulsionadora para a conscientização e mudança torna-se, assim, entre um compartilhamento e outro, mera distração. Quem tem consciência disso, muitas vezes sem precisar intervir, pois acontece de forma natural, utiliza a própria força do humor para a banalização do assunto. Um assunto muito reafirmado, como o Covid-19 e suas formas de prevenção, serve para fixar na mente das pessoas, mas um assunto sério associado a um humor por muito tempo, serve apenas para diluí-lo.
Na Alemanha, por exemplo, existem leis e campanhas para a não banalização dos símbolos nazistas, para a não negação do holocausto e para a não associação da imagem de Hitler com humor, pois isso poderia levar as pessoas a amenizar as atrocidades feitas durante a Segunda Guerra Mundial.
Estou me adiantando. Essa reflexão não começa com essa linha de raciocínio que culminará com desdobramentos ainda mais metafísicos e filosóficos. Ele começa com a leitura de dois livros fundamentais e um pequeno artigo. O primeiro foi: “Metafísica do Amor / Metafísica da Morte” de Arthur Schopenhauer. Logo na introdução da “Metafísica da Morte”, o autor nos apresenta a diferença entre um animal inconsciente do mundo que o cerca e a o ser humano, após o surgimento da razão, “a certeza assustadora da morte”. Daí o raciocínio, também, argumentado lucidamente pelo autor, de que as pessoas justificam suas ações pela ignorância dos assuntos além da sua compreensão mundana da vida – do qual eu mesmo não me excluo, ainda.


Citando Schopenhauer, “o que original o conhecimento da morte, ajuda também nas concepções metafísicas consoladoras [...]. Sobre tudo para esse fim estão orientadas todas as religiões e sistemas filosóficos, que são, antes de tudo, o antídoto da certeza da morte”. Ou seja, a busca pela compreensão da existência, da vida e do além da vida, são pilares fundamentais da existência humana. E o medo da morte e a certeza da mesma, como o autor explorou, orienta a maioria das ações das pessoas de forma consciente ou não. Um complemento para a sua “Metafísica do Amor” que, convenientemente, vem antes, preparando o leitor para a realidade nua e crua com o objetivo de não aniquilar suas ilusões de forma brusca. Isso é devastador para a maioria das pessoas. Isso porque o ser humano perde um pouco do ser humano tem a necessidade de se dominar.
Aí entramos no artigo de janeiro de 1966 de uma pequena revista da Seleções do Reader’s Digest – O Melhor de Revistas e Livros. Na página 96, para quem tem o exemplar ou irá procurar, irá encontrar o artigo “Como Vai a Sua Saúde Mental?” de Harry Levinson. Em cinco páginas o autor sintetiza o pensamento de Freud sobre a saúde mental. Na primeira linha lemos: “Sigmund Freud disse que, para ter saúde mental, o ser humano tem de ser capaz de amar e trabalhar”. Assim o autor começa a explorar os sentimentos do ser humano e como eles o motivam.
Em suma, Amor-e-Ódio, Consciência, A Necessidade de Dominar e o Ambiente, são as quatro forças principais pela qual as ações mútuas entre elas geram os sentimentos do homem.
Sobre o Amor-e-Ódio: a energia do amor nos move para a construção de algo e a manutenção do mesmo, assim como nossa raiva, quando direcionada para a solução de um problema, nos impulsiona a mudar. A disfunção de uma dessas duas pode fazer a pessoa a voltar demais par si mesmo, fazer elas acharem “extremamente difícil manter relações afetuosas e recíprocas com os outros” e a raiva pode ser direcionada para o próximo, gerando bodes expiatórios, preconceitos raciais ou exploração ao próximo. A raiva, também, pode ser direcionada par si mesmo e ela pode levar ao suicídio. 
Sobre a Consciência: Quando nascemos não temos uma ideia sobre nós, ela vai sendo construída ao longo de nossa vida e de nossas experiências pessoas e interpessoais. Nossa consciência “é feita de valores que nos ensinam, valores religiosos, preceitos morais e sociais”. Junto da consciência, temos, também, um “ideal de ego” e ele é responsável “por uma visão de nós mesmo como poderíamos ser se conseguíssemos corresponder integralmente ás aspirações que nos foram indicadas por nosso pais e outras pessoas cuja opinião acatamos. Nossas aspirações geralmente excedem nossas realizações, de maneira que raramente nos sentimos satisfeitos conosco”.
Sobre a Necessidade de Dominar: Segundo o autor, todos nós temos a necessidade de nos controlarmos e nos dominarmos. Contudo “se o homem sente que não pode atuar sobre essas forças, deixa de tentar controlá-las e torna-se apático”. Assim, se a pessoa fica muito tempo desempregada ou vivendo ás custas de uma instituição ou outra pessoa, tornam-se dependentes e “sendo dependentes, sentem-se infantis”, ou seja, a consciência da pessoa a faz voltar-se para si e a ficarem cada vez mais fechadas e egoístas. Ficam com medo de crescer e ficam sempre “dependentes e infantis”. A única forma de quebrar esse padrão, é tentar aumentar o domínio sobre si mesmo e do seu meio, ou seja, através de uma profissão, uma religião ou, na maioria dos casos, dinheiro.
Sobre o Ambiente: As outras três forças anteriores agem dentre de nós e elas entram em conflito ou em concordância com o que acontece fora de nós. Ou seja, nosso ambiente nos força ou nos condiciona “a ter liberdade de agir por contra própria” ou nos força sermos prisioneiros de nossos sentimentos pelas desilusões da vida ou a ideia errada de mundo em disparate com a nossa própria imagem pessoal (mesmo o autor não mencionando sobre isso, vale dar uma conferida no termo Weltschmerz, “dor de mundo” ou “Cansaço do mundo”, muito responsável pela anomia – um estado de falta de objetivos e regras, perda de identidade).
Ter uma saúde mental é, segundo esse autor, conseguir manter em equilibro essas quatro forças. Ele segue o artigo explicando e dando mais dicas sobre o assunto, mas o conceito necessário para a linha de raciocínio a seguir provém dessas quatro forças. Na verdade, da disfunção dessas quatro forças: o vazio.
No livro “O Homem à Procura de Si Mesmo” de Rollo May, o autor identifica o vazio como o principal problema do século XX. “Com isso quero dizer não  só que muita gente ignora o que quer, mas também que frequentemente não tem ideia nítida do que sente”, ou seja, as pessoas não têm uma ideia clara e precisa sobre seus objetivos na vida, seus propósitos ou desígnios. O autor cita: “Sou apenas uma coleção de espelhos refletindo o que os outros esperam de mim”. Um claro apelo de socorro contra a sociedade sufocante que, com seus tabus e imposições sociais, acaba impondo demais sem se preocupar com o indivíduo e suas reais aspirações, vontades ou desejos. Se já é difícil descobrir por sim mesmo, que dirá ser forçado a seguir algo?
Embora a pessoa pareça bem direcionada e sucedida, ela é uma bomba relógio pronta para explodir ao menor sinal de ameaça contra a sua realidade. Como escreve o autor: “Os jovens de hoje renunciam, em grande parte, à ambição de destacar-se, de chegar ao alto; ou, caso tenham tais ambições, consideram-nas uma falta e desculpam-se por esse resquício de costumes herdados dos pais. Desejam ser aceitos por seus iguais, mesmo ao custo de desaparecerem, ficarem absorvidos pelo grupo”.
Ele continua explicando como “o vazio passou do tédio à sensação de inutilidade e desespero” e em como “o ser humano não pode viver muito tempo no vácuo. Se não estiver evoluindo em direção a alguma coisa acaba por estagnar-se; as potencialidades transformam-se em morbidez e desespero e eventualmente em atividades destrutivas”. Lembram-se das quatro forças mantenedoras da saúde mental humana? Existe uma disfunção delas claramente nesse vírus chamado vazio. Responsável não só pela diminuição dos sonhos e aspirações humanas como a total falta de conseguir dirigir a própria vida, tomar as próprias decisões e saber, exatamente, quem é e o que quer fazer com sua vida – sem a interferência de terceiros.
“Erich Fromm observou que hoje em dia as pessoas deixaram de viver sob a autoridade da igreja ou das leis morais, mas submetem-se a “autoridades anónimas”, como a opinião pública. A autoridade é o próprio público, mas esse público é uma simples reunião de indivíduos, cada qual com seu radar ligado para descobrir o que os outros dele esperam”. E, como as pessoas, em sua maioria, também fazem parte dessa massa sem ter consciência definida sobre si mesmo ou seus objetivos, as pessoas fazem parte de um “vazio coletivo”.
Foi esse mesmo vazio “ético e emocional da sociedade Europeia”, segundo May, que foi responsável pelo surgimento de ditadores fascistas. Assim o risco desse vazio e vácuo social ocasionado por essa atitude, “se não corrigida, [pode levar] ao desperdício e ao bloqueio das mais preciosas qualidades do ser humano. Os resultados finais serão a redução e o empobrecimento psicológico, ou então a sujeição a uma autoridade destrutiva”.
Outro resultado da união desses fatores, é a solidão gerada pela necessidade cada vez mais crescente de se manter parte da sociedade. Isso foi potencializado pelas redes sociais e a necessidade latente de compartilhar nossas vidas. Segundo o autor, associa-se o isolamento ao fracasso e a interação social ao sucesso – um conceito que, não intencionalmente, o Covid-19 veio para destruir. Ele, de certa forma, resume as redes sociais de hoje em dia, mesmo sem haver menção delas no seu livro, na seguinte frase: “Importante não é o que se diz, e sim que haja sempre alguém falando. O silêncio é um grande crime, pois significa solidão e medo”.
A pessoa, como indivíduo, precisa da solidão e de um tempo para si para se encontrar e se descobrir. A ansiedade em conseguir encontrar um significado para si e mostrá-lo a sociedade, força a pessoa a se enganar e a se tornar só mais um na multidão, infeliz interiormente e riquissimamente ilustrado nas redes sociais, físicas e virtuais. Infelizmente, esse fator é responsável pela orientação da pessoa em seguir um grupo e acreditar em um ideal, mesmo que ele seja falso. “Quando um indivíduo sofre de ansiedade durante um prolongado período de tempo fica com o corpo vulnerável a doenças psicossomáticas. Quando um grupo sofre contínua ansiedade sem tomar medidas eficazes, seus membros, mais cedo ou mais tarde, voltam-se uns contra os outros”.
Para resolvermos um problema precisamos, primeiro, compreender suas causas. No momento, não sei se conseguiremos resolver alguma coisa, mas, talvez, compreender um pouco as causas dessa incongruência entre a atitude dos líderes no combate ao Covid-19. E esse problema está relacionado com a forma como a sociedade encara sua liberdade de escolha, sua importância na sociedade e na interpretação política. Valores formados pelas forças responsáveis pela sanidade mental dos seres humanos. Forças, provavelmente, em desequilíbrio e que, agora, começam a refletir o resultado de atitudes inconscientes, vazias e inconsequentes. Os líderes são apenas um reflexo desse vazio e dessa incompreensão pessoal.
Esse momento de isolamento social não é à toa. Embora, superficialmente, pareça ser apenas uma consequência do combate ao Covid-19, é o momento perfeito para rever os nossos conceitos, rever nossas escolhas e nos revermos – talvez nos vermos realmente pela primeira vez.
Independente de qual seja sua religião, partido político, raça, nacionalidade ou filosofia de vida, é inegável a revolução pela qual estamos passando socialmente no mundo inteiro. De tempos em tempos, a Terra é castigada por uma calamidade, independe se é natural ou causada pelo homem. Um lembrete de que nada dura para sempre e tudo está sujeito a uma reavaliação.


Na minha compreensão de mundo, é inconcebível uma realidade onde não tenhamos um espírito imortal ligado a um corpo físico por uma camada de inconsciência e ego ávida para passar por essas experiências terras e, talvez, evoluir um pouco mais. Adquirir consciência e compreender, através das interações sociais e criações humanas, valores para se levar por toda a eternidade.
Podem chamar de consciência, de saúde mental ou filosofia de vida. Eu compreendo como Espírito. Tomar consciência de si mesmo e do seu lugar como indivíduo na sociedade e de sua responsabilidade diante de si mesmo e das outras pessoas. É quebrar a ignorância através de uma autoanálise crítica e curar o Espírito. E curá-lo é curar toda a sociedade, seus familiares, amigos, o mundo…
Espero, de alguma forma, ter contribuído para essa compreensão. Se senti esse impulso de compartilhar essa linha de raciocínio foi, somente, com o intuito de contribuir, de alguma forma, para a cura nesses tempos difíceis.
Nunca professores, eternos aprendizes.

Tacilim Oréfice, professor de História, diagramador de livros, filósofo da contemporaneidade, mora em Juiz de Fora-MG - tacilim1990@gmail.com

Nenhum comentário: