AGENDA CULTURAL

3.4.20

Livro “A peste” – humanidade ao rés do chão



Hélio Consolaro*

Contra a evidência, negavam tranquilos que tivéssemos conhecido um mundo insensato onde o aniquilamento dos homens era como o das moscas [...] o cheiro de morte que matava ou entorpecia. (A peste)

 Entre tantos livros, encontrei na minha biblioteca um exemplar do livro "A peste" (1947), de Alberto Camus, edição RIO 1973, 185 páginas, editora José Olympio, tradução de Graciliano Ramos. Em época de coronavírus, uma boa leitura. E fui a ela.

Eu punha sempre a data da compra do livro, lá estava marcada a data: 07/04/1977. Eu tinha certeza de que não havia lido a obra do escritor franco-argelino, porque passei uma época de comprador compulsivo de livros, pois a biblioteca de cada um não se compõe dos livros lidos, mas também dos projetos de leitura.   

Eu tive uma surpresa. O livro estava todo grifado a lápis, bem ao meu estilo. Se isso for verdade, fiz uma releitura, mas não me lembrei de nada. Todos os grifos foram mantidos e outros acrescentados. Nem Paulo Freire explica. Só posso entender isso pela faixa etária: leitura do moço e do velho. 

Como o narrador é o Dr. Rieux, o livro, que é chamado de uma grande crônica e não de romance, é contado sob o ponto de vista da equipe que a prefeitura organizou para combater a peste que assolava a população de Orã. A câmara do narrador chega mais perto do padre Paneloux, do juiz Othon, dos membros da equipe. Não vi elementos do livro que nos remetam a uma metáfora do nazismo, como interpretam alguns intelectuais.

Nem por isso, Albert Camus, como um cronista comprometido com a vida do povo, narrou também a vida coletiva da população, como eram recolhidos os doentes, o aspecto desanimador da cidade, descrição dos hospitais.  

O escritor se preocupou mesmo, e conseguiu com grande maestria, é discutir a vida humana e seus aspectos. A situação apocalíptica em que vivia a cidade fazia as pessoas se revelarem. E Camus conta ao leitor, sem economizar nas palavras, o drama de certos personagens no leito da morte.

Sr. Cottard era o rentista, que encontrou a razão de viver com a peste, pois havia tentado o suicídio antes. Quando a doença se vai, suicida-se, mas matando os outros antes. 

Padre Paneloux representa a fé, mas foi trazido para a equipe de trabalho de combate à peste pelo Dr. Rieux que era humanista, compreendia o dilema do padre. Os sermões do Paneloux iam perdendo a força enquanto a febre avançava, por isso o Dr. Rieux ia se tornando santo sem Deus. O pregador cristão morreu, precisou consultar o médico. Em época de conflitos entre Fé e Ciência, havia uma grande contradição nisso.

O comportamento humano na peste bubônica, que é a do livro, e o coronavírus, na qual vivemos, há um sentimento de exílio. A leitura do livro de Albert Camus nos faz refletir, filosofar diante de uma ameaça iminente. Compensa a leitura.

"Ensaio sobre a cegueira" e "A peste" são alegorias do imponderável, que fazem cair todas as máscaras, até de governantes. Põe cada um diante da humanidade. 

*Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Membro das academias de letras de Araçatuba-SP, Andradina-SP e Itaperuna-RJ  

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