AGENDA CULTURAL

31.10.06

Sentir-se um cachorro sem dono

Hélio Consolaro

Seguir viagem, tirar os pés do chão
Viver à margem, correr na contramão
A tua imagem e perfeição
Segue comigo e me dá direção
(Gessinger – Engenheiros do Hawaii)

Sentir-se no ar, levitar-se, como eterno pára-quedista. Sentir-se um cachorro sem dono, não ter IP nem domicílio fixos. Não perder a liberdade por um prato de comida: a segurança.

Assim, deveria ser a vida, uma eterna insegurança, porque assim é a sua natureza. A sensação de segurança é uma ilusão, atrofiamento da vida, é engordar.

Concurso público, cerca elétrica, alarme, trava eletrônica, casamento de papel passado, diploma registrado. Ou juntar dinheiro, sempre somando e multiplicando, para gozar a vida na velhice. Chegar a velhice, e continuar juntando grana, como crianças juntam figurinhas.

A verdadeira segurança está em não deixar o outro nos atacar por ódio ou necessidade. Amar o próximo é não deixá-lo com ódio de você, e Deus é um prato de comida. A verdadeira segurança está na defesa do planeta para que ele não seja destruído.

Viver é viajar sem querer chegar. Descer nas estações, ver tudo, porque o tempo só existe nas rugas. Tempo não é dinheiro; sábados, domingos e feriados são os dias mais úteis, tempo é curtição. E quando a viagem terminar, pôr o pé na cova com grandeza, sem espernear, achar que estava mesmo na hora.

Manhãs. O cheiro de terra molhada. Cantar no banheiro, depois no carro. Verão. Praia, sempre. A bola rola. Atrás do trio elétrico. Ler e ouvir música. O Amor. Uma casa no campo. Amigos, todos. Uma cervejinha bem gelada. Estar com quem se ama. A paz. O mar. Chuva na janela. Chocolate. Sexo. Água fresca. Olhares que decidem. Bocas que declaram amor.

Todos os dias são inúteis. Mandar o Antônio Ermírio de Morais a pqp, quando ele diz que o brasileiro trabalha pouco. O melhor mesmo é ser um baiano em Salvador.

Viver é melhor que sonhar, mas sonhar também é viver, porque uma vida sem sonho vira consumismo, é um eterno arrastar-se pelo chão, como réptil, mas eu quero ser ave. Como alcançar as nuvens sem tirar os pés do chão, sem ensaiar vôos.

Viver assim, sob os efeitos de sobressaltos não é para lavradores: pessoas atarracadas, que se agarram ao chão. É para os caçadores, que são nômades, aventureiros, não ficam raízes. Apesar de toda a tecnologia, ainda nos dividimos em caçadores e lavradores.

Viver a fé não é pagar o dízimo para obter o cêntuplo, nem cumprir promessa em Aparecida do Norte por graça alcançada, num jogo interesseiro com o além. É fazer apenas uma oração: Deus, que seja feita a sua vontade.

Viver bem é não levar a vida a sério.

Um comentário:

Anônimo disse...

Olá Hélio! Leio suas entrelinhas todos os dias! Gosto muito do que escreve e da forma que trata certos assuntos com muito humor!
Parabéns pelo seu talento!
Beijos
Ingrid