AGENDA CULTURAL

2.8.07

O cadáver é a placenta


Hélio Consolaro

Todos nós temos um medo danado de defunto, aquele corpo sem energia, duro. Nem mesmo se o cadáver fosse do ente mais querido nos tira o pavor. Cuidar dos mortos, como banhá-los, fazer-lhes a barba, deixá-lo apresentável para o velório, não é tarefa de qualquer um. As pessoas mais corajosas nesse campo parecem ter ligações com o além.

O médico, por exemplo, precisa ter vocação e não se assustar com essa realidade, porque, já, na faculdade, manipula cadáveres mergulhados em formol. Ele tem a morte como grande inimiga, por isso não pode ser dominado por ela.

O médico salva vidas, tenta fazer tudo para que a alma (ou energia) não desgrude da matéria, apaziguando aquela separação fatal, mas é ele também que assina o atestado de óbito, porque morrer faz parte da vida.

Apesar de necessário, o próprio comércio de urnas e serviços funerários não são bem-vistos, é um ramo em que poucos se atrevem a investir. É bem melhor prestar serviços para festas, pois a alegria é mais agradável. Ganhar dinheiro com a morte sempre nos causa repugnância, por isso o agente funerário foi apelidado por nomes nada agradáveis.

Apesar desses maus-olhos com a nossa finitude, o escritor Orígenes Lessa escreveu um romance de ficção científica, denominado “A desintegração da morte”, provando que a sociedade está mais organizada em torno da morte do que da vida. Na história, os cientistas eliminaram a morte, e a economia entrou em colapso. Igrejas, hospitais, farmácias e muitos profissionais se tornaram obsoletos. Nem assassinatos eram mais possíveis.

Este croniqueiro escreve assunto tão fúnebre porque o médico-legista e seus auxiliares ganharam evidência no acidente ocorrido no aeroporto de Congonhas. Eles atuam no Instituto Médico Legal (IML), e Araçatuba possui uma unidade de tal serviço público.

Tais profissionais trabalham, ainda, intensamente na identificação dos corpos do acidente com avião da TAM, aquele carvãozinho que sobrou, tentando descobrir quem habitava aquela matéria tão reduzida.

Encontrar o corpo, dar-lhe sepultura faz parte da tradição cristã; mas há também a parte legal, porque sem o atestado de óbito, heranças e seguros não poderão ser recebidos por seus descendentes. E há gente que vale muito mais morta do que viva.

O corpo de Cristo ascendeu aos céus, o nosso volta ao barro. Subindo ou descendo, a vida continua numa configuração novamente energizada. Morrer é um novo parto, o cadáver é a placenta que apodrece. O médico-legista e o obstetra trabalham juntos.

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