AGENDA CULTURAL

16.11.08

Filosofia de sabonete


Hélio Consolaro


Em tempos de crise, a tendência é se recolher à vida interior. Fica mais barato e nos incomoda menos. Depois de uma certa idade, descobrimos que crises são cíclicas, intermináveis. Quando chegam, causam furor, e vão se embora sem que percebamos. Ninguém diz: saímos da crise, estamos sem crise.

Crise na economia mundial, na política de Araçatuba, no cotidiano. A vida é uma sucessão de problemas. Resolve-se um, surgem mais três. A arte de viver é abater cada um com nosso sorriso de escárnio. Apesar de toda essa consciência, ensimesmei-me.

Fui tomar banho, não havia sabonete. Peguei um no armário. Só fui descobrir que havia outras marcas, além da Gessy, depois de adulto. Hoje, nem sei qual é a minha marca preferida. Às vezes, pego um mais caro na gôndola do supermercado só para variar.

Rasguei a embalagem. Saiu cheiroso, pronto para a minha pele. Não sei quantas vezes abri um sabonete, que é um caroço de manga que pula da casca, para usar uma imagem de infância com muitas mangueiras. Nem sei quem o fez, ou melhor, não passou por mãos, aquilo é obra de máquinas. Não houve carinho na sua feitura, tudo foi por causa do mercado: produto de boa qualidade, combater o concorrente, baixar custo, aumentar produtividade.

O sabonete ia me acariciar. Era um carinho asséptico, uma relação não emocional. Essa é a diferença entre a civilização indígena e a nossa. Os índios fazem aquilo que usa, não compram de ninguém, tudo é feito bem personalizado, sem prostituição. Talvez esteja aí o segredo de nossas instabilidades, mas nada de lamento, não se recupera mais o elo perdido.

Aliás, eu estava doido para que o outro sabonete acabasse logo. Vai ficando miúdo, miúdo que escapava das mãos. Quando me dava ímpetos de jogar aquele resto no lixo, me vinha o dever da economia ou dá mãe gritando:

- Use até o fim. Economize. Não desperdice.

Dava prazer em pensar que abriria uma embalagem nova. Não sei se o amor é assim mesmo, fugaz; ou foi o sabonete que nos faz ver sentimento tão nobre assim, passarinheiro. Há mulheres que dizem ser o amor eterno; outras já caíram no mercado.

Todos gostam da fidelidade. Aliás, a grande jogada do marketing comercial é criar um consumidor fiel a determinada marca. Meus pais me ensinaram a comprar sempre numa mesma loja, as Casas Pernambucanas, por exemplo. Eles só compravam no Empório Aviação. Estão casados há 60 anos.

Aí vieram os supermercados, os shoppings, compra-se aqui, acolá, em qualquer lugar. Quem dá mais? Eis a grande promoção! Hoje, pais inadimplentes põem seus filhos a cada ano numa escola. No self-service religioso, as pessoas ficam na igreja onde Deus oferece mais. Qualquer coisa, procura-se o Procon.

O sabonete espuma em meu corpo. E o amor?

5 comentários:

Anônimo disse...

Este texto do senhor, professor, me remeteu a um outro de uma escritora, não sei bem de onde ela é ,que diz assim em uma de suas passagens:
“ Pra alma que o corpo lava não carece termos mãos. Não basta sabão e água, basta-nos a emoção de sentirmos, em nós mesmos, o perfume do exalo. E se ponho o meu perfume, para fora, como quero, pra que me banhar de química se o meu cheiro é mais sincero. Se a espuma me acaricia, com a própria produção, mais uma vez eu lhe pergunto : Pra que me servem as mãos? Não adianta o preço caro, e nem se tem perfume raro que só o descubro quando abro a embalagem. A minha alma é espumosa como ondas turbulentas. Se arrebentam em meu corpo lavando-me as entranhas. Não se acabam nunca e também não caem ao chão, a fabricação é própria e não preciso segurá-las, porque já não tenho as mãos e, sem elas, o elo se abre e se fecha, como um amor que fica e faz bolhas entorpecentes com cheiro de quero mais.”
Bonito o texto do senhor.
Rita Lavoyer

Patrícia Bracale disse...

E o Amor?
Amor é relação, relação c/ sua história, sua família, suas experiências...
Amor se aprende, se experimenta e se vive, com erros e acertos.
E com certeza o amor pode-se começar no banho, no carinho c/ o próprio corpo. Para amar temos q/ começar por nós mesmos e nada melhor q/ um bom banho p/ perfumar a alma.
Bolinhas de sabão pra você.

HAMILTON BRITO... disse...

Olha, a pergunta é : se o sabonete cair, quem pega?

Maria Barbieri disse...

Neste mundo de consumo exacerbado, em que cada um vale pelo que compra e possui, o amor não lava a alma das mazelas da vida,perdeu seu prazo de validade nas prateleiras das sensações reais.
Texto muito bom, professor!

Belezura disse...

adorei o texto... parabéns.