AGENDA CULTURAL

25.12.10

Divina tragédia humana

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As crises de ciúme provocadas pela infidelidade de seu esposo, Zeus, marcaram o comportamento da deusa grega Hera em muitos episódios da mitologia

Hélio Consolaro*

O mundo das excelências parece ter ficado apenas para os santos: aqueles que se desapegam de sentimentos menores, agarram seu destino com suas próprias mãos, porque a grande maioria das pessoas continua ao rés do chão, mais um número da multidão.

Dizem que o artista é a rês que na boiada se destaca, sua cabeça fica acima do nível geral. Confesso, caro leitor, que ao escrever procuro o rés do chão, porque as limitações humanas é a matéria prima de todo cronista.

Tudo aquilo que ocorre e é registrado pelas colunas policiais já foi um dia enredo de uma tragédia, escrita por gregos ou troianos, nas Américas ou na Europa. Em nosso mapa genético, a transcendência e a excelência são buscas constantes, fazem parte da trajetória de cada pessoa.

Que fez Machado de Assis de uma história tão banal que envolve o ciúme? Escreveu um excelente livro: Dom Casmurro. Bentinho foi se isolando, eliminando possíveis inimigos porque era inseguro, pois desconfiava que Capitu, sua esposa, o traía com Escobar; que seu filho Ezequiel era a cara do seu melhor amigo.
Leia o resumo desta notícia, caro leitor, detecte as semelhanças:

Depois de 21 horas de sequestro em Araçatuba, Márcia Wespal Mello, 41 anos, ex-mulher de Moacir Gonçalves de Oliveira, 45 anos, já está fora de perigo. Ela foi feita refém por Oliveira desde a manhã de ontem quarta-feira (1º), na clínica odontológica onde trabalha. O homem foi atingido na cabeça por um tiro disparado pelo atirador do Gate (Grupo de Ações Táticas Especiais) da Polícia Militar na manhã desta quinta-feira (2). Ele foi conduzido para a Santa Casa da cidade, onde passa por uma cirurgia.

Por que Moacir fez isso com Márcia? Porque achava que ela o traía com alguém antes de deixá-lo. Se você, caro leitor, quer escrever uma história de amor (e o ódio vem junto, na carona da contradição), eis um grande enredo, porque a beleza da sua história está na narrativa, no jeito de contá-la. Machado de Assis fez de um relato banal, uma narrativa fenomenal.

Os dois, quando começaram o namoro, olharam na mão do outro. E viram nelas um M (toda mão tem a letra M, formada com o vinco da pele), mas quiseram ver nisso uma feliz coincidência para consolidar aquele amor: Moacir e Márcio. Viu, caro leitor, como nós buscamos falsos argumentos, quando há um certo interesse? O equívoco existe e, às vezes, inevitável.

Não sei se por sorte ou azar, Moacir se salvou, portanto o drama não teve ainda seu desfecho no relato policial, mas você, ao contar a narrativa (conto, romance, filme, novela, etc) pode começar pelo tiro na cabeça e fazer um flashback, deixando o leitor chegar ao fim sem saber se o personagem morreu ou sobreviveu.

Assim fez Machado de Assis. Os teóricos da literatura passaram um século com uma discussão torta: Capitu traiu ou não Bentinho. E é bom dizer que o escritor brasileiro se inspirou em Shakespeare para escrever sua obra. O plágio é uma questão de intertextualidade.

Então, caro leitor, percebeu aonde esse cronista quer chegar? Somos personagem de uma história. O criador dela quer nos dar autonomia, diz que somos dono de nosso destino: liberte-se! E teimamos em ser personagem de teatro de marionetes, dizendo: “Deus quis assim”. Seguimos subservientes, rastejando pelo caminho.   

*Hélio Consolaro é professor, jornalista, escritor. Membro da Academia Araçatubense de Letras. Atualmente é secretário de Cultura de Araçatuba-SP

OBSERVAÇÃO: não pretendi aqui ignorar o sofrimento do casal, que foi medonho, apenas pegá-lo como exemplo de nossa tragédia existencial. O drama de Márcia e Moacir é de todos nós.
      

3 comentários:

Hospitality & Tourism disse...

Caro secretário
Tem razão sobre as tragédias do cotidiano. E nem é preciso chegar, no tempo, ao Bardo ou a Machado: o ciúme está na Bíblia. O lado mais angustiante dos personagens talvez resida na mentira e de como conviver com ela. Contudo, as verdades mentais de cada um, como é o caso do Bentinho, se nos assombram porque costumam gerar tragédias como essa que vc relata. A propósito veja o novo filme do Coppola. Feliz 2011!

Unknown disse...

Pois é, a vida imita a arte ou a arte imita a vida. Tudo é possível nesse mundo cão, louco; ou loucos somos nós. Afinal, somos tão insignificantes, nada sabemos ainda dessa imensidão que é a Vida.
Ninguém está isento ou imune a nada. Somos todos meros pecadores e mortais. Um dia tudo vira nada -ou não.
Belo texto. Parabéns. Abraço, Mariluci

jhamiltonbrito.blogspot.com disse...

Ta muito bom. Quando o Machadão plagia o Shakspeare houve uma intertextualidade....queo ver o Heitor plagiar alguem para ver o que acontece.
Responda epelho meu: é preciso mesmo saber dessa imensidão que [é a vida?
A mim membasta vivê-la...