AGENDA CULTURAL

16.10.11

A BABEL DAS RUAS E O MONÓLOGO DO DINHEIRO


As mobilizações de rua que assaltam o monólogo conservador falam uma língua que a ortodoxia mercadista e seu dispositivo midiático até toleram, como trilha sonora. Mas desdenham, no mérito, quando se trata de ordenar a agenda de superação do colapso neoliberal, cujo epicentro hoje é a crise bancária do euro. No Brasil, por exemplo, a mídia convoca a classe média para manifestações anti-corrupção.Mas combate agressivamente qualquer ameaça ao poder financeiro, desde a redução das taxas de juros, até o questionamento à dita "autonomia do Banco Central", que na verdade blinda as finanças em relação à democracia. É isso que alimenta a bola de neve da indignação. Seja em Atenas, afogada em 20 dias sem coleta de lixo e numa onda de suicídios em crescimento geométrico, ou em Wall Street, ou ainda em Madrid, Lisboa, Berlim, Londres, Roma etc o que as ruas dizem, como se viu neste sábado de protesto global, pode ser resumido em uma frase: "queremos ser a prioridade da crise; não a matéria-prima de salvação da plutocracia"



15/10/2011 - CARTA MAIOR 

O que a banca tem retrucado em diferentes versões e cúpulas encontra sua síntese ilustrativa num episódio da semana que termina. O presidente da Comissão Européia, Manuel Barroso, sugeriu que bancos eventualmente socorridos por dinheiro público deveriam suspender o pagamento de bônus aos dirigentes, bem como a distribuição de dividendos aos acionistas. 

Os gatos gordos imediatamente rechaçaram a dieta magra e retrucaram: querem carne fresca do matadouro público, sem renunciar à prerrogativa de fatiá-la no prato em nacos suculentos para saciar a gula pantagruélica. 

O mundo gira e volta sempre à mesma pergunta de uma crise que caminha para o seu 5º ano sem solução: quem pagará a conta da implosão da ordem neoliberal, feita justamente de um acúmulo diluviano de passivos podres excretados do crédito desregulado?

A lenga-lenga em torno da 'capitalização' do sistema bancário do euro, que carrega cerca de 6,5 trilhões de dívidas de governos, a metade, suspeita-se, impagável, reflete esse impasse.

Otimistas imaginam que uma injeção de 300 bilhões de euros bastaria para anestesiar a aflição dos mercados. O colchão de liquidez, explicam , devolveria a confiança em ações e títulos de captação do setor bancário, lubrificando novamente a crucial engrenagem do crédito . 

Espíritos menos afeitos à ligeireza contábil discordam. A desconfiança nos bancos do euro, argumentam, decorre em boa parte das suspeitas quanto à solvência de dívidas soberanas que entopem suas carteiras. Os 300 bi de euros da Grécia seriam apenas uma delicada cobertura do bolo indigesto, que contém camadas espanholas, italianas, portuguesas, irlandesas etc

Sem uma solução para o conjunto, a incerteza persistirá ; com ela, o risco sistêmico de uma quebradeira.

O custo de afastar de vez o fantasma pode ascender a catastróficos dois trilhões de euros, sobre os quais volta a mesma arguição: quem patrocinaria uma transfusão de tal calibre para estabilizar 'buracos' bancários? 

Governos injetariam dinheiro público em bancos problemáticos de seus países? Se a origem do impasse decorre justamente do colapso fiscal dessas economias, de onde sairia o dinheiro para o socorro bancário? E quem compraria os títulos emitidos com essa finalidade por Tesouros combalidos?

De Portugal, vem o sinal que justifica o receio das ruas. O primeiro -ministro Pedro Passos Coelho anunciou pela tevê, na última 5ª feira, que além dos cortes em pensões e orçamentos sociais, bem como das privatizações 'heróicas', a carga horária dos funcionários do Estado será ampliada em meia hora a partir de 2012. Sem remuneração equivalente. 

Ao criatividade da direita lusitana indica que há uma solução neoliberal para a crise do neoliberalismo. Algumas horas por dia de trabalho forçado --em regime de exceção, naturalmente, a exemplo das ditaduras redentoras-- adicionaria certa elasticidade à rigidez das contradições produzindo economias necessárias à salvação da banca e do sistema.

Ao contestar esse monólogo com seu ruído pluralista, as ruas não devem dar ouvidos a quem as enxerga como uma Babel incompreensível. Seu problema não decorre de uma deficiência lógica inerente às exclamações coletivas em defesa da saúde pública, da educação, do emprego, das aposentadorias dignas. Decorre apenas da ainda insuficiente escala dos decibéis com que essas coisas são ditas e da sua ainda incipiente articulação para ocupar a agenda das decisões. Um flanco que, como se viu neste sábado, marcha com disposição para ser superado.
Postado por Saul Leblon às 20:49 - 

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