Jornalista, de 64 anos, fala da infância pobre, conta como aprendeu inglês mesmo sem fazer aulas e lembra da dificuldade para superar a morte do irmão. Repórter especial da TV Globo, ele recorda a experiência como correspondente em Nova York, quando foi o primeiro jornalista brasileiro a chegar aos destroços do World Trade Center
O café de Edney Silvestre é sempre amargo. Mas ele oferece açúcar ao visitante. E diz que nunca deixa de reabastecer a ração das maritacas que o visitam na janela da sua sala, num amplo apartamento no Leblon. É assim, nos gestos simples, que se revela um dos mais experientes jornalistas da TV Globo.
Edney acaba de lançar o romance Boa Noite a Todos. Desde 2009, suas quatro obras de ficção já foram traduzidas na Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Holanda, Sérvia e Portugal. “Não imaginaria que tudo se desenrolasse tão rapidamente e tão bem na minha carreira literária”, diz, bebericando seu café. É interrompido por um casal de maritacas que aparece na janela. Além do Globo Repórter, Edney está há 12 anos à frente do Globo News Literatura, para onde foi após outros 12 como correspondente em Nova York. Diz que reencontrou a felicidade recentemente, quando Fernanda Montenegro leu um trecho do seu livro, no Rio. “Nunca entendi por que ela quis ler. Meu analista falou: ‘Não seria porque ela gostou?’. É, ali fiquei feliz”, sorri ele, que representará o Brasil na Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, de 8 a 12 deste mês.
QUEM: Como é sua rotina de escritor?
EDNEY SILVESTRE: Não existe uma rotina. Trabalho a qualquer hora, quando posso, quando os personagens falam comigo. Escrevo em ordem cronológica. Não faço como os escritores americanos, que seguem uma planilha, para ir pulando fatos e depois voltando. Nunca escrevi nada de ficção na redação, por exemplo. Às vezes fico horas esperando algo, poderia escrever, mas não sai uma linha enquanto estou lá!
QUEM: É verdade que você começou a se interessar por literatura ainda criança, por um problema de saúde?
ES: Sim, é verdade. Eu tinha anemia, não falava com quase ninguém. Aí me davam livros. Não sabia nem ler, mas já pegava exemplares para ver figuras.
QUEM: Como foi o episódio no qual você e sua família perderam tudo?
ES: Foi em Valença, interior do Rio. Uma vez, quando meu pai estava tomando banho, o chuveiro teve um curto-circuito e pegou fogo na casa inteira. Só deu tempo de a gente sair correndo. Fui retirado do meio do fogo, saí de pijama. Papai saiu de roupão para o meio da rua. Minha mãe, de camisola. Depois fomos morar de favor numa casa provisória. Eu tinha 3 anos, não lembro nada direito dessa época. Sei o que me contaram.
QUEM: Há outros momentos como esse, dos quais não se recorda com detalhes?
ES: Tem sim. O outro momento foi um acidente que sofri, quando saí pela janela de um jipe em movimento. O que tenho são fotogramas de imagens: ladeira, janela, poeira, muro, sangue. Levei meu lábio à mão (ele mostra cicatriz na boca).
QUEM: A gente esquece momentos difíceis por não saber lidar com eles, não?
ES: Quando se ultrapassa o limite da dor, ou você desmaia ou corta a noção de que está com dor. Não lembro quando entrei no hospital com meu lábio nas mãos, todo sangrando. Eu bloqueei esse momento da minha vida. Tem uma imagem de soldado da Guerra Civil Espanhola que é um clássico: ao ser metralhado no braço, ele continua correndo, sem perceber que já não tem um dos membros. É assim que a gente sobrevive, esquecendo o que nos causa dor.
QUEM: Você sempre teve uma vida difícil?
ES: No geral, não. Tive muita sorte em vários momentos. Tinha a ignorância da juventude. Te dou um exemplo. Precisava trabalhar, achava que sabia inglês, mas não sabia. Ouvi que precisavam traduzir umas histórias em quadrinhos. Fui na editora, falei que queria traduzir. “Tem experiência?” O que respondi? “Sou muito bom em inglês.” É como se diz: “Não sabendo que era impossível, foi lá e fez”.
QUEM: E como aprendeu inglês?
ES: Indo ao cinema. Via várias vezes seguidas o mesmo filme. O ator falava: “I’ll kill you”. E eu repetia. Com as cenas, sabia que ele queria dizer: “Eu vou matar você”.
QUEM: Você foi o primeiro repórter brasileiro de TV a chegar aos escombros do World Trade Center (WTC). Como foi essa experiência?
ES: Fiquei 12 anos como correspondente em Nova York, mas essa foi a mais intensa experiência. É vivo na minha memória o cheiro de carne queimada no WTC. Foram 21 dias cobrindo, indo lá todo dia. Foi entristecedor. No momento do atentado às torres havia muitos jovens estagiários nos escritórios, porque trabalhavam no horário da Ásia, e morreram todos. Não tinha o que enterrar. Eu vi funerais simbólicos pela cidade. Não dá para imaginar uma coisa dessas.
QUEM: Pegando carona no título de um livro seu, complete a frase: “Se eu fechar os olhos agora...”?
ES: Eu não imaginaria que tudo se desenrolasse tão rapidamente e tão bem na minha carreira literária. Eu não imaginava que isso tudo ia acontecer na minha experiência de autor de ficção. Achava que este livro ia vender uns 800 exemplares e só. Até que a revisora me ligou e falou que sabia que eu estava inseguro. Mas disse que meus diálogos são como os de Umberto Eco. A gente lê e sabe qual personagem está falando.
QUEM: Mora sozinho?
ES: Moro, mas não sou sozinho. Meus amigos são minha família. Estou próximo dos meus irmãos e sobrinhos, desde que papai morreu há alguns anos. Ele estava caminhando na calçada, em Valença, quando um caminhão de uma construtora o atropelou. Foi no dia de São Jorge, 26 de abril. Eu tive que fazer o reconhecimento do corpo. Não deveria ter ido, mas fui, alguém tinha que ir.
QUEM: Outro livro seu, A Felicidade É Fácil, tem um título sugestivo. O que comenta sobre isso?
ES: A felicidade nunca me foi fácil, nunca! Além do 11 de Setembro, que me deixou bastante triste, a morte do meu irmão mexeu comigo. Morávamos os dois neste apartamento. Não chegou a realizar o desejo de ir a Paris. Dava uma tristeza só de pensar nisso... (Edmond morreu vítima das complicações de hepatite C há quatro anos). Ficou muito magro, debilitado, frágil... Quando ele morreu, no dia seguinte me anunciaram como finalista do Prêmio São Paulo de Literatura.
QUEM: E quando deu a virada da tristeza para a felicidade em sua vida?
ES: Horas antes de a Fernanda Montenegro ler trechos do meu livro num teatro, no Rio (no mês passado). Nunca entendi por que ela quis ler. Meu analista falou: “Não seria porque ela gostou?”. É, pode ser. Ali eu fiquei feliz de verdade.
QUEM: O que o faz feliz no dia a dia?
ES: Gosto de mostrar o Brasil aos brasileiros. O que faço no Globo Repórter é um trabalho documental. Sou feliz trabalhando. Para outros, felicidade é ter uma Mercedes, um iate, viajar constantemente. Até quero viajar. Nunca fui a Fernando de Noronha e não sei se irei. Mas o mais importante para mim é sentar e escrever um conto.
QUEM: Na sua vida de repórter, já acumulou várias entrevistas interessantes. Destacaria alguma?
ES: Quando eu fazia entrevistas com atores de Hollywood, já achava que era mais interessante conversar com escritores. Mas alguns me surpreenderam: Tom Hanks, Juliette Binoche, Paul Newman... Sabe quem é interessantíssimo? Johnny Depp. Perguntei por que ele deixou de protagonizar filmes de Hollywood por um tempo e foi fazer independentes. Ele respondeu: “Não sou iogurte para ser vendido em supermercado”.
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