AGENDA CULTURAL

31.10.14

Evandro Affonso Ferreira: obsessão pela palavra

Evandro Affonso Ferreira - revista E Sesc - março de 2014


Foto: Paula Johas/Editora Record
Foto: Paula Johas/Editora Record
Evandro Affonso Ferreira
O escritor fala de sua obsessão pela palavra, sua mudança de estilo e da arte de inventar vidas. Ele esteve em Araçatuba na Jornada de Literatura de Araçatuba há alguns anos.

“Acho que essa literatura privilegia a comunicação imediata, e isso podemos ver através do cinema, da televisão. E eu estou na contramão, faço uma literatura que privilegia a palavra, o som, o questionamento. Eu talvez esteja errado...”

“Sou da criatividade, de inventar vidas mesmo falando da minha mãe, do meu pai, do meu irmão, eu os reinvento”
“Sempre fui um personagem de mim mesmo. Escrevo nos shoppings, escrevo nas confeitarias, com meu chapeuzinho, escrevo a mão. Já gastei mais de cinco mil desses blocos de papel, não sei quantas mil canetas que eu acho a dois reais no centro”
“Escrevo do jeito que escrevo porque sou analfabeto, sou autodidata, nunca soube pontuar. Fui descobrindo ponto e vírgula e fui escrevendo de acordo com meu ouvido, de acordo com o som, então a necessidade faz o cabrito pular"
Evandro Affonso Ferreira, mineiro de Araxá, escreveu seu primeiro livro, Grogotó (2000), aos 55 anos de idade. Antes disso foi redator publicitário por 20 anos. Montou seu primeiro sebo, Sagarana, com sua biblioteca de três mil livros, e um segundo sebo, Avalorava, ambos em São Paulo. Escreveu Araã! (2002), Erefuê (2004), Zaratempô (2005), Catrâmbias (2006). Mudou seu estilo no livro Minha mãe se matou sem dizer adeus (2010), com o qual ganhou o prêmio de Melhor Romance de 2010 pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). Seu livro mais recente, O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam, o consagrou com o Prêmio Jabuti de melhor romance em 2013. “Venho de uma linhagem que privilegia a palavra. Por exemplo, no Brasil: Lucio Cardoso, Cornélio Pena, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Samuel Rawet”, afirma. “Só que minha literatura se divide em duas fases: até o Minha mãe se matou sem dizer adeus, porque antes eu me preocupava muito com a vida da palavra. A partir daí, comecei a me preocupar com a morte do homem.” A seguir, trechos.

Você pratica uma literatura bastante diferente da literatura em vigor no Brasil. Na sua produção há uma grande preocupação com a linguagem, com a sonoridade. Se houvesse uma ascendência, qual seria?
Venho de uma linhagem que privilegia a palavra. Por exemplo, no Brasil: Lucio Cardoso, Cornélio Pena, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Samuel Rawet. Só que minha literatura se divide em duas fases: até o Minha mãe se matou sem dizer adeus, porque antes eu me preocupava muito com a vida da palavra. A partir daí, comecei a me preocupar com a morte do homem. Eu tinha uma obsessão pela palavra, cheguei a compilar três mil palavras sonoras em um dicionário próprio. Não se tratava de neologismos, mas palavras que existem. Quando tive dois sebos, o Sagarana e o Avalorava, um belo dia descobri a palavra “bangalafumenga” – uma gíria carioca do século 19 que quer dizer “joão-ninguém” e eu me entusiasmei com essa palavra. A partir daí comecei a catalogar palavras e juntar, apenas pela sonoridade. Então, comecei a escrever com palavras sonoras. É bem diferente de Guimarães Rosa, desse pessoal todo. Porque a minha proposta, que chegou a ser uma obsessão, era a sonoridade. Vou te dar um exemplo: não me contentava em falar que a pessoa era louca, eu descobri, de repente, que “zuruó” também é “louco”. Mas não contente com isso, descobri que “zoropitó” também é “louco”, então em vez de falar “louco”, eu falava “zuruózoropitó”, já aumentava o som. Só que isso foi ficando uma paranoia... Acabei me tornando um paranoico da palavra. Eu virei refém da palavra. Isso estava me incomodando muito com meus cinco, seis primeiros livros. De repente, me deu esse estalo, eu pensei “bom, vou mudar a minha maneira”, mas não abri mão da sonoridade.
Mudou por quê? Em que sentido?
Mudei porque já estava me incomodando, me fazendo mal. No sentido de obsessão, poxa, eu ficava uma manhã inteira para escrever três frases. A frase tinha que ter uma sonoridade, uma coisa assustando, e eu estava me preocupando mais com a forma do que com o conteúdo. Então, a partir do momento em que comecei a morar sozinho, uma virada terrível na minha vida, vivia em um quarto na Praça Marechal ¿e eu odiava esse quarto. Saía de casa seis e meia e voltava sete, oito horas da noite. Não queria aparecer naquele quarto horroroso. E de repente eu começo a ver a cidade, a fotografá-la através de palavras. Foi aí que surgiu Minha mãe se matou sem dizer adeus.

O que é a preocupação com a morte do homem?
Uma preocupação com a solidão, com a loucura. A morte do homem seria a morte em vida. A morte do homem no sentido de que ele se isola do mundo, ele fica sozinho, ele fica numa linha tênue entre a lucidez e a loucura, ele fica numa linha tênue entre abandonar tudo através do desalento ou se matar. Passei a me preocupar com esse tipo de ser humano que somos todos nós.
A sua literatura passa, então, a ser mais formal. A sua base filosófica passa a ocupar mais espaço?
Passa a ocupar mais espaço no momento em que, um dia, entro no shopping Higienópolis, vou tomar café numa confeitaria e percebo uns 80, 90 velhinhos, muitos acompanhados de enfermeiras, porque ali no bairro de Higienópolis tem uma classe média alta e eles envelhecendo têm condições de contratar uma enfermeira para cuidar deles. Eu percebi isso e, um dia, disse: “eu vou sentar nesse shopping, vou ficar um ano, das dez ao meio-dia e das quatro às seis para falar telepaticamente com todos eles”. E fiz isso. Então, eu olhava uma velhinha babando e aí o enfermeiro limpava a boca e eu dizia para o enfermeiro, telepaticamente: “você é bom” e ele me respondia também telepaticamente: “não sou bom, faz parte do contrato”. A partir daí fui dialogando com todo mundo no shopping. Eu vi um velhinho cabisbaixo tomando café e disse telepaticamente: “não se mate agora, quem sabe o café lá de cima não seja tão encorpado assim”. E fui aprendendo a conversar telepaticamente com todo aquele pessoal. E com certeza eu não falei com nenhum deles. Porque eu tenho uma dificuldade de fazer uma literatura jornalística, eu não posso entrevistar ninguém que a coisa desanda. Nem pesquisar. Eu tenho que inventar vidas. Se eu olho pra você eu invento uma vida pra você.
Essa base da realidade não o interessa?
Não me interessa nem um pouco. Não me agrada e costumo chamar pejorativamente de literatura “jornalistizada”. Não gosto, não me interesso, não leio e não dou valor. Pode ser bom, pode não ser, mas não me preocupa. Sou da criatividade, ¿de inventar vidas mesmo falando da minha mãe, do meu pai, do meu irmão, eu os reinvento. Escrevi Minha mãe se matou sem dizer adeus e muitas pessoas me perguntaram: “Sua mãe se matou?” Não. No texto, o narrador diz “minha mãe é feia, bêbada e louca”. A minha mãe não era feia nem louca. Portanto, sobrou algo para minha mãe.
Então um elemento real tinha?
Um elemento real sempre tem, não podemos esquecer de Flaubert quando dizia que “Bovary sou eu”. Então, é impossível todo autor sair dele mesmo, se ausentar intotum. O que faço? Cismo em dizer “vou escrever sobre um mendigo”, como aconteceu no meu último livro publicado, este que ganhou o Jabuti, O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam. Eu morando na Praça Marechal, um belo dia vou visitar um amigo que mora no Copan e percebo muitos mendigos pelo caminho. Um dia eu contei 95 mendigos. Pensei: “Vou um dia escrever um livro sobre mendigo”, mas o meu mendigo. E aí começo a elaborar: que mendigo é esse? Esse mendigo pode ser eu mesmo. Por que pode ser eu mesmo? Eu estou sozinho no mundo, a minha vida desandou, eu tenho uma amada e ela pode me abandonar a qualquer momento, e podia ficar andando pela rua a espera dela, só que não sou um mendigo qualquer. Como você mesmo disse, já tive dois sebos, já li muito livro, sou razoavelmente culto... Bom, falei: “Esse mendigo, que vou ser eu mesmo, vai saber tudo de Erasmo de Rotterdam”. Só que me meto em uma enrascada danada porque ele vai saber sobre os adágios de Erasmo. Mas descobri, consultando amigos, como Alcir Pécora, e outros mais intelectuais, que teria dificuldade, porque poucos adágios foram traduzidos no Brasil. É quando descubro que há 20, 30 adágios etc. etc.... Então, começo a reinventar os adágios. Reinventar no sentido de pegar coisas do Horácio, coisas latinas. Então dos adágios de Erasmo de Rotterdam deve ter uns quinze. Eu coloco uns oitenta no livro, que são de outras fontes, mas na literatura tudo é possível, tudo é ficção. Portanto, esse meu mendigo na verdade sabia um monte de adágios não só de Erasmo de Rotterdam. Faço esse narrador ir enlouquecendo aos poucos, ele está há dez anos na rua, fedendo, tanto é que o interlocutor dele – que nem eu sei quem é – está a dez metros de distância para não se aproximar dele, tamanha a fedentina. Mas tudo o que ele vê, ele imagina que é a amada que está chegando, e assim ele vai enlouquecendo. Então, eu criei um mendigo meu. Existem outros mendigos, obviamente, mas eu não quis falar com nenhum deles.
Leio seu livro e penso “um mendigo desses não existe”. É impossível um mendigo assim. A verossimilhança, tanto neste caso como no da sua mãe, não é uma questão que passa pelos estágios da sua criação?
É uma questão, digamos, kafkiana: existe e não existe. No caso da metamorfose, aquele inseto não existe, mas existe a inquietude do Gregor Samsa. Quer dizer, é uma transformação simbólica. Pode não existir um mendigo que saiba latim, mas existe um mendigo que com todas aquelas inquietudes que coloquei no livro. Um mendigo está esperando a amada, um mendigo que desistiu da vida, um mendigo que está vendo outros mendigos alcoólatras, um mendigo que tá vendo outro mendigo explodindo de tanto beber... Eu faço dois, três mendigos explodirem de tanto beber. Aí é o olhar do escritor: sempre que ando pela rua vejo dois, três, quatro, cinco mendigos ¿andando debaixo do viaduto com a garrafinha bojuda. Aquilo lá é pinga, que deve custar dois, três reais, pinga baratinha, e eles ficam dividindo aquilo humanamente. O que eu faço? Eu crio uma mulher molusco, a mulher mais triste de todos os tempos, desde que o mundo é mundo. Eu inventei uma mendiga que é a pessoa mais triste, ninguém sabe porque tanta tristeza. Será que o filho morreu ou ela perdeu tudo, que diabo é aquilo? E aí invento outro menino, um menino borboleta, que é um menino negro, só que ele está tão enferrujado que não tem mais cor, e aí pousa uma borboleta de repente, no ombro dele, e começam a chamá-lo de menino borboleta, que é um menino esperto de doze, treze anos, até agora eu não sei qual a idade dele. Ele tem uma coisa amorosa com essa mulher molusco, ele encosta a cabeça no colo dela e de repente morde o sexo dela e sai correndo. De repente ele traz flores pra ela, é um relacionamento bonito, e os leitores se encantaram, ficaram encantados com esses dois personagens, mais do que o narrador, o mendigo que está esperando a amada.
Essa observação sobre o álcool na sociedade, no entorno, é uma coisa que vem da sua infância?
Da minha infância, da minha mãe e eu também fui um boêmio. Bebi muito, até que tive, aos 45 anos, um infarto. Fiz um pacto comigo mesmo quando estava na UTI, que era “se eu sair dessa não vou beber, não vou fumar, vou ler, vou escrever de verdade”. Porque eu vinha daquela geração que derrubava governo em mesa de bar. Eu tinha muitos amigos cultos e não lia nada. Eu sou autodidata; como dizia Mario Quintana, sou ignorante por conta própria. Eu não lia, até os 45 anos devo ter lido dois livros, mas sabia muito de literatura de ouvir. E isso não é um erro. Outro dia ouvi numa entrevista, perguntaram para Bob Dylan “e poesia?”, e ele falou “ouvi bastante poesia”, ele vinha daquela geração que ouvia, ele ouvia Whitman, Ezra Pound, ele disse “eu conheço muitas poesias de cor porque eu ouvia”, então eu ouvi muita literatura.
Aí você fez um pacto com você mesmo: “Vou sair daqui e ler e escrever”.
E aí eu saí, operei o coração, saí e comecei a comprar livros. Quando eu completei quase três mil livros, estava falido e desempregado. Pensei: “Vou vender esses livros num sebo”. Chego a um sebo de um amigo e ele me diz: “Evandro, sua biblioteca é muito boa, nós vamos comprar por um, dois, três reais cada livro. Monte seu próprio sebo”. Eu pensei: “Poxa, vou montar meu próprio sebo”. Aí começo a ler de verdade, e a frequência do sebo também ajuda, muita gente culta, muitos intelectuais, íamos conversando e eles foram me dando dicas de bons livros.
O fato de você viver com os livros te deu um diálogo com essa literatura. É algo bem borgiano, o escritor que monta um sebo, por razões várias, mas monta um sebo e daí mergulha na literatura. Isso é um personagem?
É um personagem. Sempre fui um personagem de mim mesmo. Escrevo nos shoppings, escrevo nas confeitarias, com meu chapeuzinho, escrevo a mão. Já gastei mais de cinco mil desses blocos de papel, não sei quantas mil canetas que eu acho a dois reais no centro. Escrevo a mão e depois passo para o computador em casa, de noite.

A sua literatura refuta a realidade, ela não se baseia nos fatos, e quando há fatos é uma visão sua, uma interpretação sua. Agora, do outro lado, a literatura de uma maneira geral, atualmente, está muito comprometida com essa reprodução jornalística. O que você acha que tem acontecido com os escritores?
Eu tenho a impressão, como existe uma tese econômica que diz que o dinheiro muda de mão, de que a literatura também mudou de mão. Acho que ela está mais “jornalistizada”, está privilegiando mais o cinema, a televisão. Acho que o escritor está pensando menos, ele não tem mais, como todos os escritores do passado, um pé na filosofia, os escritores pensavam. Você vê Dostoievski, ele pensa o tempo inteiro; Guimarães Rosa em Grande Sertão Veredas é uma aula de filosofia, ele está sempre pensando; Machado de Assis idem. Você vê, O homem sem qualidade tá sempre dialogando com Nietzsche, e por aí vai. Então acho que essa literatura privilegia a comunicação imediata, e isso podemos ver através do cinema, da televisão. E eu estou na contramão, faço uma literatura que privilegia a palavra, o som, o questionamento. Eu talvez esteja errado...
Para você, escrever nos locais públicos é uma questão econômica, ou é isso e também a necessidade de estar conectado com a realidade que você não coloca nos seus livros?
Não. Essas coisas acontecem comigo. Escrevo do jeito que escrevo porque sou analfabeto, sou autodidata, nunca soube pontuar. Fui descobrindo ponto e vírgula e fui escrevendo de acordo com meu ouvido, de acordo com o som; então a necessidade faz o cabrito pular. Não sei, por exemplo, fazer diálogo, então apelei para o fluxo de consciência, eu me dei melhor com isso, nos meus livros não existem diálogos, é tudo direto. Foi necessidade. Cito como exemplo o Louis Armstrong; aquela voz dele era porque ele tinha um calo na garganta, então aproveitou esse calo e foi cantar daquele jeito, criou um estilo. Minha vida foi me empurrando de uma maneira para um lugar, um quarto, e eu vivia na rua, poxa, então pensei: “Vou me virar na rua, como é que eu faço?” Então há 5, 6 anos eu vivo na casa dos outros, é muito ruim morar na casa dos outros, morando na casa dos outros, você só vai pra dormir. Portanto, tive que criar meu escritório próprio. O que é meu escritório? Uma mochila, um caderno, uma caneta e um lugar pra ficar. Que lugar pra ficar? Ou é confeitaria ou é livraria, aí fui aprendendo a escrever na rua. Mas sempre tendo o tema dentro de mim, independentemente de quem está na rua. E aí fui me aperfeiçoando nisso.


Um comentário:

Anônimo disse...

Que rio piscoso, esse, hem,Consa! Que solo profícuo em tesouros de pepitas de ouro e pedras preciosas. E você descobre cada raridade!!!... Ainda bem que não guarda só para você, partilha com todo mundo, e feliz daquele que aceita este partilhamento. De minha parte, muito obrigado.
Bié.