Nasceu na Beira, Moçambique, em 1955. Foi jornalista. É professor, biólogo, escritor. Está traduzido em diversas línguas. Tem recebido diversos prêmios, dentre eles o Prêmio Camões, em 2013. |
Revista Pazes
No ano de 2007, Mia Couto participou, em Campinas – SP, de um Congresso sobre leitura. O homenageado era o poeta Ferreira Gullar e Mia iniciou o seu discurso falando na importância de “desarmadilharmos” o mundo.
No ano de 2007, Mia Couto participou, em Campinas – SP, de um Congresso sobre leitura. O homenageado era o poeta Ferreira Gullar e Mia iniciou o seu discurso falando na importância de “desarmadilharmos” o mundo.
Segundo ele, “compete-nos
desarmadilhar o mundo para que ele seja mais nosso e mais solidário. Todos
queremos um mundo novo, um mundo que tenha tudo de novo e muito pouco de mundo.
A isso chamaram de utopia.”
O escritor passa, então, a discorrer sobre as armadilhas do
mundo contemporâneo, abordando desde o maniqueÍsmo até a “biologização da
identidade” que, segundo ele, são itens a serem “desarmadilhados”.
Esta intervenção de Mia Couto foi registrada no livro de ensaios “E se Obama fosse africano?”, onde poderá ser lida em sua
integralidade.
Segue o texto de Mia Couto:
As armadilhas de dentro
A nossa tentação é quase sempre maniqueísta. A visão
simples que separa os “bons” dos “maus” é sempre a mais imediata. Quanto menos
entendemos, mais julgamos.
A cilada maior é acreditarmos que as armadilhas estão
sempre fora de nós, num mundo que temos por cruel e desumano. Ora,
por muito que nos custe, nós somos também esse mundo. E as armadilhas que
pensávamos exteriores residem profundamente dentro de nós. Quebrar as
armadilhas do mundo é, antes de mais, quebrar o mundo de armadilhas em que se
converteu o nosso próprio olhar. Precisamos de passar um programa antivírus
pelo nosso hardware mental. Escolhi falar dessas ratoeiras interiores que nos
convertem em nómadas deambulando entre ecos e sombras.
A armadilha da realidade
Uma das primeiras armadilhas interiores é aquilo que
chamamos de “realidade”. Falo, é claro, da ideia de realidade que actua como a grande
fiscalizadora do nosso pensamento. O maior desafio é sermos capazes de
não ficar aprisionados nesse recinto que uns chamam de “razão”, outros
de “bom-senso”.
A realidade é uma construção social e é,
frequentemente, demasiado real para ser verdadeira.
Nós não temos sempre que a levar tão a sério.
Quando Ho Chi Minh saiu da prisão e lhe perguntaram como
conseguiu escrever versos tão cheios de ternura numa prisão tão desumana ele
respondeu: “Eu desvalorizei as paredes”. Essa lição se converteu num lema da
minha conduta. Ho Chi Minh ensinou a si próprio a ler para além dos muros da
prisão. Ensinar a ler é sempre ensinar a transpor o imediato. É ensinar a escolher
entre sentidos visíveis e invisíveis. É ensinar a pensar no sentido original da
palavra “pensar” que significava “curar” ou “tratar” um ferimento.
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DEZ MELHORES LIVROS DE MIA COUTO
Terra Sonâmbula
A Menina sem Palavra
A Confissão da Leoa
Antes de Nascer o Mundo
O Último Voo do Flamingo
Vozes Anoitecidas
A Varanda de Frangipani
Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra
Cada Homem é Uma Raça
O Gato e o Escuro
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Temos de
repensar o mundo no sentido terapêutico de o salvar de doenças de que padece.
Uma das prescrições médicas é mantermos a habilidade da transcendência,
recusando ficar pelo que é imediatamente perceptível. Isso implica a aplicação
de um medicamento chamado inquietação crítica. Significa fazermos com a nossa
vida quotidiana aquilo que fizemos neste congresso que é deixar entrar a luz
da poesia na casa do pensamento.
A armadilha da identidade
A mais perigosa armadilha é aquela que possui a aparência
de uma ferramenta de emancipação. Uma dessas ciladas é a ideia de que nós,
seres humanos, possuímos uma identidade essencial: somos o que somos porque
estamos geneticamente programados. Ser-se mulher, homem, branco, negro, velho
ou criança, ser-se doente ou infeliz, tudo isso surge como condição inscrita no
ADN. Essas categorias parecem provir apenas da Natureza. A nossa existência
resultaria, assim, apenas de uma leitura de um código de bases e nucleótidos.
Esta biologização da identidade é uma
capciosa armadilha. Simone de Beauvoir disse: a verdadeira natureza humana é
não ter natureza nenhuma. Com isso ela combatia a ideia estereotipada
da identidade. Aquilo que somos não é o simples cumprir de um destino
programado nos cromossomas, mas a realização de um ser que se constrói em
trocas com os outros e com a realidade envolvente.
A imensa felicidade que a escrita me deu foi a de poder
viajar por entre categorias existenciais. Na realidade, de pouco vale a leitura
se ela não nos fizer transitar de vidas. De pouco vale escrever ou ler se não
nos deixarmos dissolver por outras identidades e não reacordarmos em outros
corpos, outras vozes.
A questão não é apenas do domínio de técnicas de
decifração do alfabeto. Tratase, sim, de possuirmos instrumentos para sermos
felizes. E o segredo é estar disponível para que outras lógicas nos habitem, é
visitarmos e sermos visitados por outras sensibilidades. É fácil sermos
tolerantes com os que são diferentes. É um pouco mais difícil sermos solidários
com os outros. Difícil é sermos outros, difícil mesmo é sermos os outros.
A armadilha da hegemonia da escrita
Uma terceira armadilha é pensar que a sabedoria tem
residência exclusiva no universo da escrita. É olhar a oralidade como um sinal
de menoridade. Com alguma condescendência, é usual pensar a oralidade como
patrimônio tradicional que deve ser preservado. O culto de uma sabedoria
livresca pode contrariar o propósito da cultura e do livro que é o da
descoberta da alteridade.
Certa vez, um menino de rua em Maputo veio-me devolver um
livro que ele vira nas mãos de uma estudante à saída da escola. Notando a minha
fotografia na capa, esse menino acreditou que a estudante me tinha roubado o
livro. Me comoveu esse menino que atravessou a cidade para me devolver algo
que, no entender dele, me pertencia. Mas o que ele me entregava era mais do que
um objecto. Ele me entregava a inquietação profunda, a interrogação: a quem
pertence realmente um livro? Ele é nosso porque o adquirimos, sim. O livro deve
ser objecto e mercadoria para chegar às nossas mãos. Mas só somos donos desse
objecto quando ele deixa de ser objecto e deixa de ser mercadoria. O livro só
cumpre o seu destino quando transitamos de leitores para produtores do texto,
quando tomamos posse dele como seus co-autores.
A mais importante linha divisória em Moçambique não é
tanto a fronteira que separa analfabetos e alfabetizados, mas a fronteira entre
a lógica da escrita e a lógica da oralidade. A absoluta maioria dos 20 milhões
de moçambicanos vive e funciona num tipo de racionalidade que tem pouco a ver
com o universo urbano. Mas em Moçambique, como no resto do mundo, a lógica da
escrita instalou-se com absoluta hegemonia. Nesses casos, pressupostos
filosóficos do mundo rural correm o risco de ser excluídos e extintos. Algumas
das ideias que venho defendendo nesta comunicação estão claramente presentes na
epistemologia da ruralidade africana. A concepção relacional da identidade,
inscrita no provérbio: “Eu sou os outros”; a ideia de que a felicidade se
alcança não por domínio mas por harmonias; a ideia de um tempo circular; o
sentimento de gerir o mundo em diálogo com os mortos: todos estes conceitos
constam da rica cosmogonia rural africana. É evidente que não se pode
romantizar esse mundo não urbanizado. Ele necessita de enfrentar o confronto
com a modernidade. O desafio seria alfabetizar sem que a riqueza da oralidade
fosse eliminada. O desafio seria ensinar a escrita a conversar com a oralidade.
Não são só os livros que se lêem
Falamos em ler e pensamos apenas nos livros, nos textos
escritos. O senso comum diz que lemos apenas palavras. Mas a
ideia de leitura aplica-se a um vasto universo. Nós lemos emoções nos rostos,
lemos os sinais climáticos nas nuvens, lemos o chão, lemos o Mundo, lemos a
Vida. Tudo pode ser página. Depende apenas da intenção de descoberta do nosso
olhar. Queixamo-nos de que as pessoas não lêem livros. Mas o deficit de leitura
é muito mais geral. Não sabemos ler o mundo, não lemos os outros.
Vale a pena ler livros ou ler a Vida quando o acto de ler
nos converte num sujeito de uma narrativa, isto é, quando nos tornamos
personagens. Mais do que saber ler, será que sabemos, ainda hoje, contar
histórias? Ou sabemos simplesmente escutar histórias onde nos parece reinar
apenas silêncio?
Lembrei aqui o episódio do menino de rua porque tudo
começa aí, na infância. A infância não é um tempo, não é uma idade, uma
colecção de memórias. A infância é quando ainda não é demasiado tarde. É quando
estamos disponíveis para nos surpreendermos, para nos deixarmos encantar.
Quase
tudo se adquire nesse tempo em que aprendemos o próprio sentimento do Tempo.
A verdade é que mantemos uma relação com a criança como
se ela fosse uma menoridade, uma falta, um estado precário. Mas a infância não
é apenas um estágio para a maturidade. É uma janela que, fechada ou aberta,
permanece viva dentro de nós.
Recordo-me de que a guerra tinha deflagrado no meu país e
o meu pai me levava a passear por antigas vias-férreas à procura de minérios
brilhantes que tombavam dos comboios. Em redor, havia um mundo que se
desmoronava mas ali estava um homem ensinando o seu filho a catar brilhos entre
as poeiras do chão. Essa foi uma primeira lição de poesia. Uma lição de leitura
do chão que todos os dias pisava. Meu pai me sugeria uma espécie de intimidade
entre o chão e o olhar. E ali estava uma cura para uma ferida que eu não
saberei nunca localizar em mim, uma espécie de memória de alguém que viveu em
mim e fechou atrás de si um cortinado de brumas.
Pois eu vivo praticando a lição de leitura do meu pai que
promove o chão em página. E estou aplicando o ensinamento de Ho Chi Minh que
despromove a prisão em possibilidade de página. Deste modo aprendendo algo que
sei que nunca chegarei a saber.
Enquanto escrevia o meu romance O último voo do flamingo
viajei pelo litoral do sul de Moçambique à procura de mitos e lendas sobre o
mar. Mas tal não aconteceu. Dificilmente havia histórias ou lendas. O
imaginário destes povos pertencia invariavelmente à terra firme. Apesar de
habitarem o litoral, os seus sonhos moravam longe do oceano.
Aos poucos fui entendendo — aquelas zonas costeiras eram
habitadas por gente que chegou recentemente à beira-mar. São
agricultores-pastores que foram sendo empurrados para o litoral. A sua cultura
é a da imensidão da savana interior. Em suas línguas não existem palavras
próprias para designar barco. O pequeno barquinho toma o nome a partir do
inglês — bôte. O navio grande é chamado de xitimela xa mati (literalmente, “o
comboio da água”). O próprio oceano é chamado de “lugar grande”. Pescar diz-se
“matar o peixe”. Deitar a rede é “peneirar a água”.
As armadilhas de pesca são construídas à semelhança
daquelas usadas na caça. Os territórios de colecta de mariscos na praia são
parcelados e sujeitos a pousio, exactamente como se faz nos terrenos agrícolas.
Ao contrário do que sucede no centro e no norte de Moçambique, estes povos
pescam sem serem pescadores. São lavradores que também colhem no mar. O seu
assunto continua sendo a semente e o fruto. Os seus sonhos moram em terra e os deuses viajam pela chuva.
Nós estamos todos como esses povos que desconheciam a
relação com o mar. O chamado “progresso” nos empurrou para uma fronteira que é
recente, e olhamos o horizonte como se fosse um abismo sem fim. Não sabemos dar
nome às coisas e não sabemos sonhar neste tempo que nos cabe como nosso. Os
nossos deuses dificilmente têm moradia no actual mundo.
Mas é exactamente nesse espaço de fronteira que
estamos aprendendo a ser criaturas de fronteira, costureiros de
diferenças e viajantes de caminhos que atravessam não outras terras mas outras
gentes. A poesia de Gullar deu mote a este encontro. O poeta Gullar defende que
a poesia tem por missão desafiar o impossível e dizer o indizível. O que o
poeta faz é mais do que dar nome às coisas. O que ele faz é converter as coisas
em aparência pura. O que o poeta faz é iluminar as coisas. Como nos versos com
que encerro:
Toda coisa tem peso:
uma noite em seu centro.
O poema é uma coisa
que não tem nada dentro,
a não ser o ressoar
de uma imprecisa voz
que não quer se apagar
— essa voz somos nós.
uma noite em seu centro.
O poema é uma coisa
que não tem nada dentro,
a não ser o ressoar
de uma imprecisa voz
que não quer se apagar
— essa voz somos nós.
*Mia Couto é escritor moçambicano com sucesso de leitura no Brasil
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