AGENDA CULTURAL

29.8.18

Bolas

Alice Silva*

Lua cheia, redonda, prateada. Bola lindamente projetada no céu negro, magnífica, soberana, rainha da noite. Marina ficou um bom tempo ali, no seu quintal, a contemplar a lua. Nas mãos, um saco de pães quentinhos  e uma moeda de um real: tudo que havia sobrado do seu salário. 

Mas as contas, que beleza! Todas pagas. E agora, pela frente, viriam ainda vinte dias até receber o próximo salário. Uma roupa nova, um bom sapato, há muito tempo não comprava. Porém a patroa, sempre renovando o guarda roupa, e vestindo o mesmo manequim dela, lhe abastecia dos artigos semi novos de boas marcas. 
Agora a lua refletia numa poça d’água do quintal e seu brilho prateado lhe transportou para bem longe dali. 

Estava frente ao mar, era noite, uma brisa suave lhe acariciava os cabelos, e a lua lhe emprestava o brilho, as estrelas chegavam e perguntavam o nome seu... Ela contava os meses, os dias, para realizar o sonho de conhecer uma praia.Havia um calendário pendurado na parede  do seu quarto.  


Com um marcador, ia fazendo bolas em torno dos dias , comemorando um dia a menos para sua tão sonhada viagem.  Pagava uma excursão com certa dificuldade. Quando atrasava uma parcela, ficava triste, como alguém que precisa de um remédio para viver e não consegue comprá-lo.

O organizador da excursão era um homem compreensivo, que levaria aquela moça até de graça, pois a conhecia desde criança, e tinha um carinho muito grande por ela. 

Mas contemplava o esforço dela, lhe dizendo que ficasse tranquila, que um pequeno atraso ele perdoava. Um biquíni preto, de bolas brancas, pouco usado pela patroa lhe foi dado: experimentava a peça de vez em quando, com receio de ganhar peso e não poder usá-lo. Mas ganhar peso, era um pouco difícil, com a correria  e escassez de recursos que enfrentava todo dia.  

Enquanto sonhava , havia muito chão a limpar, muita louça a lavar, choro de criança a acalentar. A patroa, cada dia mais fútil, resolvera aderir a duas bolas de preenchimento nas bochechas. Todas as suas amigas estavam fazendo o procedimento: ela não poderia ficar de fora! O marido não aprovou o resultado: ficou artificial demais, desnecessário. 

Olhava para ela e meneava a cabeça em total desaprovação. Sobrou para Marina  o azedume da senhora, que não entendia o por quê de tanta implicância  ultimamente com tudo que  fazia naquela casa.A mulher precisava era tratar o caráter, mas não: a aparência contava muito mais no meio em que convivia. 

Alguém tinha que aguentar o mau humor dela.Nos encontros semanais com as amigas siliconadas, loiras e com luzes nos cabelos e nenhuma iluminação no cérebro,  sobrava um balde de conversas fúteis, vazias. 

A primeira que virava as costas e ia embora, imediatamente era alvo de comentários maldosos, inconvenientes, das demais. Chamavam isso de “ encontro semanal  das amigas” .  

Marina observava, apenas, enquanto servia o chá, o suco, sempre atenta ao olhar da patroa: não podia perder o emprego. O curso noturno que fazia, que lhe daria uma melhor qualificação no mercado de trabalho, estava longe de ser concluído. 

Ora bolas, o tempo estava passando, e era preciso viver! Havia um objetivo a alcançar, e pensando assim, foi embora cantarolando “amanhã/ vai ser outro dia”...

*Alice Maria, escritora, membro do Grupo Experimental da Academia Araçatubense de Letras

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