AGENDA CULTURAL

25.11.18

Morte e vida, sim; vida e morte, não

Esta é a imagem da morte, ou melhor, de quem tem medo dela

*Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Araçatuba-SP
Estou começando a ler um livro "Existo, existo, existo - dezessete tropeços na morte ", da escritora irlandesa Maggie O'Farrel. E na orelha está escrito: "Nunca estamos mais perto da vida do que quando nos confrontamos com a possibilidade da morte".

A medo da morte está no campo da finitude: terminar, acabar. Aí criamos o céu e o inferno, para quem é transcedental, como consolo esperamos viver noutra dimensão. Embora todos têm dúvidas quanto a isso, é mais fácil acreditar.

Sempre eu disse que quem não aceita a morte, não entendeu a vida. Entre dizer e aceitar, há uma distância enorme, não sei como vou reagir quando souber que a "foicenta" esteja próxima, à minha procura.

A assertiva da orelha do livro que estou lendo tem fundamento, pois conforme envelhecemos a tendência é nos tornamos mais compreensivos, compassivos, contemplativos, mais gente. Até dizem que na velhice, os homens vão se tornando mais femininos.

A frase popular "Para morrer, basta estar vivo" é uma verdade. Há gente que não quer correr risco em nada, garantia em tudo. Basta nascer para pôr a vida em risco. Ninguém tem certificado de garantia de nada, quem exige isso ainda não entendeu a vida.

Eu vivi duas situações agudas em que poderia ter perdido a vida. A primeira foi no nascimento, por fórceps. Filho primogênito, pais com 20 anos de idade, ainda não existia cesariana. Eu impedia o parto, não queria nascer, a parteira não deu conta, chamaram o médico em casa. 

E ele perguntou ao meu jovem pai: "Quer salvar o filho ou a mãe?". Ele se desesperou, chorou, e meu avô materno respondeu no lugar dele: salve a mãe. E deu tudo certo para os dois; sou teimoso desde o nascimento. 

Não vivi conscientemente esse momento do parto, que me deixou marcas tanto física como psíquica. Elas foram aparecendo conforme eu crescia, avançava na idade.

Vivi a segunda situação de morte quando fui preso político (preso por discordar do governo da época, que era militar). Cheguei ao DOI-CODI, na rua Tutoia, em São Paulo, e um braçudo, revólver na cintura, com a camisa estourando de tanto músculo, me perguntou:

- Tu vai virar presunto lá dentro, seu comunista de merda!

O filho de Dona Augusta tremeu. Na época me achava um adulto nos altos de meus 24 anos, e descobri que era um moleque procurando autoafirmação. 

Como eu havia lido a tríade de Jorge Amado "Os subterrâneos da liberdade" dias antes da prisão, que denunciava a tortura no Estado Novo, eu sabia que estava no bico do corvo. Aqueles 30 dias de prisão modificaram a minha vida. Tornei-me pipoca estourada, como escreveu Rubem Alves.

Então, caro leitor, escrevo isso como estivesse pintando um quadro, me pondo na obra. Para Fernando Pessoa, o poeta é um fingidor, finge até a dor que não sentiu. 

Não fingi nada aqui porque ainda não morri, mas chegando lá ou não chegando a lugar nenhum, não volto para lhe contar, prefiro lhe passar minhas experiências antes para que morramos sossegados. 

Um comentário:

Ventura Picasso disse...

Semana cheia de coisas boas - O Ricardo Kotscho nos passou uma crônica que era um ponto da sua biogr4afia. Hoje vc passa o seu ponto, 'teimoso até pra nascer'. Sobre o medo da morte deixo um testemunho: Em agosto sofri uma tempestade de síncopes que descobri como é o fim. Desaparecem a luz e o som - ao voltar à realidade, senti que fora um desmaio muito rápido, a minha impressão era que passara alguns segundos. Qual não foi a minha surpresa quando minha mulher disse que ficou apavorada, demorou tanto o retorno que ela pensou que eu não voltaria. Foi uma experiência agradável, descobri que a "foicenta" é melhor que muito santinho solto nos salões de oração... Gostei muito, Consa.