A incrível história que não tem fim
Dizem que
foram moldados por grandes pedras, justo para suportar fortes abalos. Enquanto
o pequeno grupo se refazia do impacto e tentava respirar em meio à fumaça e à
poeira dos escombros, os Hawker
fizeram uma segunda incursão e logo uma terceira, uma quarta e logo já não
havia mais o que fazer. Quase metade do edifício jazia em ruinas e focos de
incêndio iniciavam a destruição fina do lugar. Em poucos minutos, o acervo documental
e a rica memória ali abrigada foram consumidos para sempre. Outra memória se ia
a iniciar, mas dessa vindoura absolutamente ninguém sequer suspeitava que
poderia ter algum dia lugar na história. Salvo o Homem que era o objeto daquela
caçada. Agora, aos aviões sucederam-se os blindados e outros carros de combate
terrestre. O forte canhonaço completava em detalhe a destruição que os aviões não
haviam dado conta. O destino naquela manhã, trágico que fosse, acabava de ser traçado.
O destino, esse estranho que nos acompanha, criador-criatura que marca conosco
as linhas da nossa própria existência, havia esgotado seu repertório de
premonições e prodromias. É forte o cheiro de gasolina, a fumaça tudo cobre e a
respiração fica a pouco e pouco mais difícil. O Homem pede aos próximos que
saiam, não permaneçam ali, que se salvem. Alguns o ouvem, nem todos. O homem
concilia ao destino, em tom breve, seu amor pela terra natal e sua fé no
futuro. Su profunda fe en el futuro.
Ouve-se, ouviram os presentes, um seco estampido. Alguns juraram ter ouvido um
som seco, sim; e, todavia, característico da castanha esmagada. O Homem é
encontrado com o crânio dilacerado. Ao lado do corpo estendido num sofá, o
fuzil.[2]
Palácio de La Moneda bombardeado no 11 de Setembro de 1973 |
Melhor dito, seu
exército, que já não era mais o exército da nação, mas tão somente uma força
armada que, pretorianamente, obedecia seu general. Antes conhecido como O
Medíocre, agora entronizado como comandante-em-chefe, ao cair a tarde desse
Primeiro Dia ele já se havia transformado em Dictator Maximus. Assassinato. Truculência. Carnificina. Barbaridad genocida. O país estava
perplexo como nunca antes havia estado. Chocado, seria melhor dizer. E chocado
permaneceu por muito tempo.
O que é choque, qual seu
efeito? Digamos um choque emocional, um choque violento, a morte de alguém
muito querido em circunstâncias trágicas. Ou, digamos que tenha havido um cataclismo (kataklysmós), com destruição e mortes em
poucos minutos. Já vimos esta cena: pessoas andando perdidas, pra lá e pra cá.
Balbuciam coisas sem sentido, andam sujas, andrajosas, melecadas. Um golpe de
Estado, no entanto, não é um evento natural. Por mais cataclísmico que seja, o
golpe é produto humano, fruto de relações políticas, portanto, relações de
poder. Uma pessoa chocada é vulnerável. Pode parecer idiotizada, ficar idion, ou seja, referida a si, fechada
em si mesma. Não mais reativa ao que acontece do lado de fora.
Como vulnerar uma pessoa propositadamente,
como transformá-la em zumbi,
alquebrá-la, retirar dela qualquer substrato de
vontade e discernimento? Como
fazer com que ela “colabore” com a
autoridade?
No livro A
Doutrina do Choque, a ativista política canadense,
Noemi Klein, nos conta como.[4]
Ela relata que pesquisas em psicologia
comportamental conduzidas nos anos 1950 indicaram
como isso seria possível. Um projeto
na Universidade de McGill, Montreal,
submeteu voluntários a tratamentos
desumanos: privação sensorial com isolamento
completo por dias e semanas. Na fala do
coordenador do projeto, Donald Hebb,
“a privação sensorial é na verdade uma
forma de conseguir monotonia extrema.
Causa perda de capacidade crítica, o
pensamento é menos claro, os pacientes
queixam-se de que nem sequer conseguem
sonhar... Enquanto fazíamos nossas
experiências, começamos a pensar que é possível
que algo que produza mal-estar físico e
inclusive dor poderia ser mais tolerável do que
simplesmente as condições de privação
que estávamos a estudar”. Donald Hebb
interrompeu as pesquisas: “Não tinha
ideia, quando o propus, o quanto
perversas estas armas, potencialmente
cruéis, poderiam chegar a ser.” Hebb
denominou privação sensorial de arma. Perversas
armas.
Pouco tempo depois,
ali mesmo, teve início outro projeto
coordenado por Ewan Cameron. Se antes com
Hebb os voluntários tinham a
liberdade de
interromper a
cooperação, com Cameron as vítimas não
tiveram a mesma sorte. Segundo Hebb, “o que
ele fez foi mais longe do que havíamos feito. Trabalhamos
estritamente sob a condição de que os sujeitos em
estudo tinham a liberdade de sair
quando o desejassem e alguns o fizeram”. No
Memorial Allan Institute, da McGill, Cameron
conduziu experiências com pacientes
psiquiátricos e não devia satisfações
éticas a ninguém. Ali, literalmente ele
se entregou ao projeto
de esvaziar ou apagar
o cérebro dos seus
pacientes, um
protótipo do que ficou
conhecido como
técnica de
brainwhashing. A velha e conhecida lavagem cerebral. Tirar tudo de suas cabeças, dessubjetivá-los, para os reconstruir a partir do zero. Choque elétrico, sono induzido e repetição de mensagens gravadas, estas eram algumas das técnicas por ele utilizadas. Militares norte-americanos e de outros países demonstraram grande interesse e acompanharam de perto as pesquisas de Cameron. A CIA levou à prática o trabalho dele, codificado num manual de instruções denominado “KUBARCK”.[5] Tortura de prisioneiros era um dos tópicos. E então choques elétricos, espancamentos, fome, sede, privação de sono, calor ou frio extremos, ameaças. Quanto tempo até que o sujeito desmorone? Entre outras, essa foi a pergunta. A resposta permitiu
brainwhashing. A velha e conhecida lavagem cerebral. Tirar tudo de suas cabeças, dessubjetivá-los, para os reconstruir a partir do zero. Choque elétrico, sono induzido e repetição de mensagens gravadas, estas eram algumas das técnicas por ele utilizadas. Militares norte-americanos e de outros países demonstraram grande interesse e acompanharam de perto as pesquisas de Cameron. A CIA levou à prática o trabalho dele, codificado num manual de instruções denominado “KUBARCK”.[5] Tortura de prisioneiros era um dos tópicos. E então choques elétricos, espancamentos, fome, sede, privação de sono, calor ou frio extremos, ameaças. Quanto tempo até que o sujeito desmorone? Entre outras, essa foi a pergunta. A resposta permitiu
apontar os caminhos
práticos que
poderiam “quebrar” um
prisioneiro,
com que ele deixasse
de resistir. Em
conjunto, os achados
de Cameron seriam
muito úteis na guerra
psicológica que abria
suas primeiras
fronteiras. A guerra fria
Submeter prisioneiros
a maus-tratos não é coisa nova. O novo é
o uso racional e
metódico dessa forma
de violência e a
possibilidade de ser
ensinada. O que se quer é a colaboração
da vítima, a
informação, não sua
morte. Entretanto,
um prisioneiro pode
ser assassinado por meios torpes e, neste
caso, não importa a quanto de tortura e a
quantas tormentas ele será submetido
até que a morte sobrevenha. No
genocídio argentino, entre 1976 e 1982,
prisioneiros foram enviados aos Centros
Clandestinos de Detenção, Tortura e Extermínio,
cerca de 300 em todo o país. La
Perla, nas cercanias de Córdoba, foi o mais
importante deles. Quase todos os
sequestrados lá detidos iriam ser mortos,
logo não fazia diferença e viessem a
colaborar ou não. Assim, desde o momento da
detenção eram submetidos a
tratamentos degradantes. Todas as mulheres
foram sexualmente abusadas ao longo do
tempo em que lá estiveram e mesmo
alguns homens; todos foram
submetidos a excruciantes torturas físicas;
choques elétricos e espancamentos se sucediam
dia e noite até o dia da batalha final.[7]
O objetivo das forças militares argentinas era
esse: matar, eliminar, reduzir a escombros
aquelas pessoas classificadas como
inimigas da pátria. O que acontecia nesses
lugares – porque em certa altura toda a
gente bem fazia ideia - era mantido apenas em
parte silenciado. Informações “vazavam”
à sociedade e não raro um corpo
mutilado era deixado à mostra em logradouros
públicos de grande circulação. O cadáver
cumpria sua função de peça de propaganda
política. Aquilo era mesmo para ser visto
e não para ser ocultado: faremos
tremer até os inocentes, diziam. Ao ler as
reflexões de Feinmann[8] acerca desse período,
recordei que no navio
negreiro era produzido um choque
assemelhado. No momento em que o grande tumbeiro levantava âncoras com sua carga humana completa, ensardinhada nos porões abaixo do convés, um cativo era escolhido pela tripulação, conduzido forçado até o mastro principal, sendo ali amarado e, diante de todos, chicoteado até a morte. Choros, gritos, lamentos, urros, sangue, urina, fezes. Os despojos eram atirados pela amurada e faziam o deleite de tubarões famintos. A cena daquele “desmonte” da negra carne, produzida como um teatro de requintada crueldade, gerava nos circunstantes um estado tal de pavor que garantia a travessia do mar oceano sem maiores transtornos com a disciplina.
negreiro era produzido um choque
assemelhado. No momento em que o grande tumbeiro levantava âncoras com sua carga humana completa, ensardinhada nos porões abaixo do convés, um cativo era escolhido pela tripulação, conduzido forçado até o mastro principal, sendo ali amarado e, diante de todos, chicoteado até a morte. Choros, gritos, lamentos, urros, sangue, urina, fezes. Os despojos eram atirados pela amurada e faziam o deleite de tubarões famintos. A cena daquele “desmonte” da negra carne, produzida como um teatro de requintada crueldade, gerava nos circunstantes um estado tal de pavor que garantia a travessia do mar oceano sem maiores transtornos com a disciplina.
Voltemos a Naomi
Klein. Não muito longe da McGill, na outra
margem do Lago
Michigan, num outro
laboratório se
preparavam formas
novas de intervenção. Não em indivíduos,
mas em coletivos ou na sociedade. Era
gente limpa e culta, mais limpa e culta
que os auxiliares de Cameron. E não se
tratava de choque elétrico nem de
fármacos e sim de
economia política.
Lá, na Illinois University, pontificava Milton
Friedman. Klein o chama de “o outro Dr.
Choque”: choque neoliberal, como veio a se chamar
décadas mais tarde.
Neoliberalismo ou
ultra-liberalismo significa eliminar a esfera
pública da vida econômica de uma nação. Por
economia entende-se os modos de produzir
a vida, todas as formas, incluindo as
subjetivas. Pronto, tudo isso virou
mercadoria, num estalar de dedos. Tudo isso
deve virar mercadoria, sustentava a economia
política de Friedman. Só assim
haverá felicidade. Se alguns têm muita
riqueza e muitos pouca ou nenhuma,
isso apenas se deve ao mérito dos
primeiros. Ou a acasos genéticos, loterias,
como se diz. O caso é como convencer os
cidadãos a aceitarem redução de direitos e
ganhos, e mesmo a extinção de alguns
deles; menor renda, maior jornada,
inseguridade social,
precarização,
manipulação da comunicação, violência
institucional, criminalização étnica, aumento da miséria, é
assim que o choque neoliberal de Milton
Friedman trabalha. Tem sido assim no
mundo globalizado desde algumas
décadas. Quer dizer, desde o começo dos anos
1980. De lá para cá, para a maioria do
povo as possibilidades de morrer à míngua ou
nas mãos de agentes do Estado ou,
que seja, sofrer alguma violação
aumentaram.
Naomi Klein vai dizer
que uma sociedade não aceitaria ser
submetida a tais restrições passivamente. E,
todavia, se tiver quebrada sua vontade, tais
políticas de privatismo maximizado e
destituições violentas poderiam ser
implementadas. Por isso ela fez comparações entre
a quebra da vontade de um sujeito e a
quebra da vontade de uma nação, de um
povo.
Noemi Klein faz essas
comparações entre tortura e economia ultra-neoliberal.
São muitas, podemos crer.
Em seu livro sobre como nações podem ser
“chocadas”, ela diz que isso pode
acontecer “por guerras, ataques terroristas, coups
d’état e desastres naturais”.
E são outra vez
“chocadas” por
corporações e políticos que
exploram o medo e a desorientação deste
exploram o medo e a desorientação deste
primeiro choque para impulsionar
a
“terapia”
do choque econômico. E então
as pessoas que ousam resistir a essa
as pessoas que ousam resistir a essa
política
de choque são, se necessário
“chocadas”
pela terceira vez - pela polícia e
por soldados, pela prisão e interrogatórios. Ou seja, o estado
catártico produzido no indivíduo por ação
violenta, também poderá ser produzido nas
sociedades, como fenômeno de massa.
Ilustração cruzando as duas datas: 11 de setembro de 1973 e 11 de setembro de 2001 |
No Chile isso tudo aconteceu mais ou
menos em simultâneo, já naquele primeiro
dia. Quarenta anos depois, publicação
brasileira deu o
seguinte destaque: “Vitorioso, Pinochet impôs sua ferrenha ditadura e se
vangloriava de controlar até o movimento das folhas (...) Junto a um grupo de
discípulos de Milton Friedman, impôs um modelo liberal ao extremo que levou ao
lançamento da economia após a privatização de empresas e serviços do Estado”.[9]
Tal modelo, ou melhor, projeto, denominava-se El Ladrillo. O Tijolo. O tijolo com o qual se construiria nova e
original experiência, todavia de feição familiar: eliminação do controle de preços,
venda de empresas estatais, eliminação dos impostos de importação e cortes dos
gastos públicos, entre outras medidas. Friedman comemorou tal esfuziante momento
e o chamou de “movimento rumo ao livre mercado”.
Já antes Friedman vinha recebendo estudantes estrangeiros em seu
laboratório na Illinois University, lugar onde se havia apropriadamente
entronizado Alfred Von Hayek, o papa do neoliberalismo. Lá concluíram seus
cursos de mestrado e doutorado. Alguns eram brasileiros, entre os quais Paulo
Roberto Nunes Guedes, hoje o mais famoso deles. Estudantes estrangeiros da Chicago School of Economics foram
estagiar no Chile, para ver na prática como se devia fazer, como se devia
acabar com a servidão. Em 1972, ainda no governo Allende, Friedman abrira um
programa de formação em “livre mercado” para estudantes de economia chilenos.
Os da Universidade Católica foram para lá, depois apelidados “The Chicago Boys”.
Saiu deles, naquele longínquo 1973, o primeiro tijolo que décadas depois viria
a matar velhos precariamente aposentados.
Todos sabem que nenhum outro Estado foi tão extensivamente
saqueado quanto foi o Chile na ditadura Pinochet. E claro que este saque só
poderia ser feito às custas dos trabalhadores e do povo. Sem parlamento, sem
partidos políticos, sem sindicatos, sem assembleias, sem discussão com a
sociedade: decidia-se de manhã, botava-se em prática à tarde. Vamos privatizar
tudo o que pode ser privado, vamos acabar com o monopólio estatal do cobre,
vamos aproveitar que todo mundo está atordoado pra passar a boiada inteira,
vamos controlar essa porra toda aí, porra! E vamos vender o Banco do Chile,
porra! Deixa cada um se foder do jeito que quiser![10]
[1]
Araçatubense aposentado e escritor bissexto.
[2] É
farta a literatura sobre esse momento, incluindo relatórios técnicos e ensaios.
Julguei de interesse partilhar matérias divulgadas em setembro de 1973 por
jornal brasileiro que fez a cobertura do golpe. Confira em https://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/com-palacio-de-la-moneda-cercado-allende-se-suicidou-para-nao-renunciar-9841769.
E principalmente aqui: https://www.ebc.com.br/noticias/40-anos-do-golpe/2013/09/o-dia-final-de-salvador-allende.
[3] Sobre
o Estádio Nacional conferir em https://pt.wikipedia.org/wiki/Centro_de_deten%C3%A7%C3%A3o_Est%C3%A1dio_Nacional_de_Chile
[4] The shock doctrine. The rise of disaster
capitalism. New York: Metropolitan Books/Henry Holt & Company, 2007. Confira
o documentário com o mesmo título. Disponível em https://vimeo.com/26773488.
[5] Kubark
Counterintelligence Interrogation. Disponível em https://nsarchive2.gwu.edu/nsaebb/nsaebb27/docs/doc01.pdf. Confira também https://science.howstuffworks.com/torture-manual1.htm.
[7]
Centenas deles foram dopados, acomodados em aviões e atirados vivos no Rio da
Prata. Para outras informações sobre os CCDTE confira: http://www.apm.gov.ar/lp/1-la-perla-centro-clandestino-de-detenci%C3%B3n-tortura-y-exterminio
[8] Feinmann,
José Pablo. Filosofía y derechos humanos. Buenos Aires: Planeta, 2019.
[10] Anotações
da Reunião Ministerial do Governo do Brasil, realizada em 22 de abril de 2020.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TjndWfgiRQQ
Um comentário:
Muito importante este texto. Mostra como as práticas de destruição das capacidades de reações individuais e sociais de articulam. Parabéns, vou divilgar+
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