AGENDA CULTURAL

4.8.20

Com quantos golpes se faz uma canoa? Por Carlos Botazzo[1]


 A incrível história que não tem fim

Era o 11 de setembro. Amanhecera um pouco nublado, porém pouco depois as nuvens se foram e um sol ralo tomou conta do céu. Embora o azul refletisse embaixo como um cinza brilhante, seria equivocado e nem de longe se poderia dizer que aquele era céu de brigadeiro. Para o pequeno grupo que naquela hora da manhã se achava no interior do prédio mais solene da cidade, as notícias não eram boas e alguma tensão mantinha-se no ar, eletrizando os que se achavam próximos. Havia indefinição e isso gerava uma certa angústia. Então, o avião foi visto. E logo depois viram outro. Vindos do norte, fizeram acentuada curva à esquerda e aprumaram na direção do imponente edifício. Primeiro um, seguido logo de perto pelo outro. O Hawker Hunter da dianteira mergulhou e o que vinha atrás fez o mesmo. Passaram raspando pelo topo, mais ou menos se encaixando por entre os prédios das ruas paralelas. A primeira explosão sacudiu a estrutura desde seus alicerces, que pareciam estar sendo arrancados do lugar onde ancestralmente haviam sido colocados. 
Dizem que foram moldados por grandes pedras, justo para suportar fortes abalos. Enquanto o pequeno grupo se refazia do impacto e tentava respirar em meio à fumaça e à poeira dos escombros, os Hawker fizeram uma segunda incursão e logo uma terceira, uma quarta e logo já não havia mais o que fazer. Quase metade do edifício jazia em ruinas e focos de incêndio iniciavam a destruição fina do lugar. Em poucos minutos, o acervo documental e a rica memória ali abrigada foram consumidos para sempre. Outra memória se ia a iniciar, mas dessa vindoura absolutamente ninguém sequer suspeitava que poderia ter algum dia lugar na história. Salvo o Homem que era o objeto daquela caçada. Agora, aos aviões sucederam-se os blindados e outros carros de combate terrestre. O forte canhonaço completava em detalhe a destruição que os aviões não haviam dado conta. O destino naquela manhã, trágico que fosse, acabava de ser traçado. O destino, esse estranho que nos acompanha, criador-criatura que marca conosco as linhas da nossa própria existência, havia esgotado seu repertório de premonições e prodromias. É forte o cheiro de gasolina, a fumaça tudo cobre e a respiração fica a pouco e pouco mais difícil. O Homem pede aos próximos que saiam, não permaneçam ali, que se salvem. Alguns o ouvem, nem todos. O homem concilia ao destino, em tom breve, seu amor pela terra natal e sua fé no futuro. Su profunda fe en el futuro. Ouve-se, ouviram os presentes, um seco estampido. Alguns juraram ter ouvido um som seco, sim; e, todavia, característico da castanha esmagada. O Homem é encontrado com o crânio dilacerado. Ao lado do corpo estendido num sofá, o fuzil.[2]

Palácio de La Moneda bombardeado no 11 de Setembro de 1973
Ao final desse dia 11 de setembro de 1973, o cenário de destruição que assolava Santiago estende-se a todo o país. Centenas, milhares de presos começaram a ser levados para o Estado Nacional, em Ñuñoa,[3] e centros de detenção menores. Todos improvisados porque não havia cárcere suficiente para tanta gente. Houve resistência, mesmo depois da queda de La Moneda. Não durou muito, alguns dias apenas, talvez semanas, e todavia houve. Houve também fuzilamentos sumários naquele e nos próximos dias e meses. Repetindo: neste fatídico 11 de setembro foram assassinadas mais de mil pessoas. A cifra chegaria a quase cinco mil assassinatos nos meses seguintes. O rigoroso toque de recolher, se desobedecido, era castigado com a morte. Ninguém saía nem entrava. Sindicatos, fábricas, escolas, igrejas, associações, partidos políticos, as câmaras técnicas, o Parlamento, os governos provinciais, os Ministros de Estado: nada restou intocado já ao final deste primeiro dia. Digamos então em reverência Primeiro Dia. Carnificina no Primeiro Dia. Muita. A morte do Homem no Palacio de La Moneda marcou o começo da grande carnificina. Salvador Allende Gossens foi o primeiro. Depois dele, milhares. Com crueza e fealdade, os comandantes militares colocaram seu bloco na rua.

Melhor dito, seu exército, que já não era mais o exército da nação, mas tão somente uma força armada que, pretorianamente, obedecia seu general. Antes conhecido como O Medíocre, agora entronizado como comandante-em-chefe, ao cair a tarde desse Primeiro Dia ele já se havia transformado em Dictator Maximus. Assassinato. Truculência. Carnificina. Barbaridad genocida. O país estava perplexo como nunca antes havia estado. Chocado, seria melhor dizer. E chocado permaneceu por muito tempo.

O que é choque, qual seu efeito? Digamos um choque emocional, um choque violento, a morte de alguém muito querido em circunstâncias trágicas. Ou, digamos que tenha havido um cataclismo (kataklysmós), com destruição e mortes em poucos minutos. Já vimos esta cena: pessoas andando perdidas, pra lá e pra cá. Balbuciam coisas sem sentido, andam sujas, andrajosas, melecadas. Um golpe de Estado, no entanto, não é um evento natural. Por mais cataclísmico que seja, o golpe é produto humano, fruto de relações políticas, portanto, relações de poder. Uma pessoa chocada é vulnerável. Pode parecer idiotizada, ficar idion, ou seja, referida a si, fechada em si mesma. Não mais reativa ao que acontece do lado de fora.

Como vulnerar uma pessoa  propositadamente, como transformá-la em zumbi, alquebrá-la, retirar dela qualquer substrato de vontade e discernimento? Como fazer com que ela “colabore” com a autoridade?

No livro A Doutrina do Choque, a ativista política canadense, Noemi Klein, nos conta como.[4] Ela relata que pesquisas em psicologia comportamental conduzidas nos anos 1950 indicaram como isso seria possível. Um projeto na Universidade de McGill, Montreal, submeteu voluntários a tratamentos desumanos: privação sensorial com isolamento completo por dias e semanas. Na fala do coordenador do projeto, Donald Hebb, “a privação sensorial é na verdade uma forma de conseguir monotonia extrema. Causa perda de capacidade crítica, o pensamento é menos claro, os pacientes queixam-se de que nem sequer conseguem sonhar... Enquanto fazíamos nossas experiências, começamos a pensar que é possível que algo que produza mal-estar físico e inclusive dor poderia ser mais tolerável do que simplesmente as condições de privação que estávamos a estudar”. Donald Hebb interrompeu as pesquisas: “Não tinha ideia, quando o propus, o quanto perversas estas armas, potencialmente cruéis, poderiam chegar a ser.” Hebb denominou privação sensorial de arma. Perversas armas.

Pouco tempo depois, ali mesmo, teve início outro projeto coordenado por Ewan Cameron. Se antes com Hebb os voluntários tinham a liberdade de
interromper a cooperação, com Cameron as vítimas não tiveram a mesma sorte. Segundo Hebb, “o que ele fez foi mais longe do que havíamos feito. Trabalhamos estritamente sob a condição de que os sujeitos em estudo tinham a liberdade de sair quando o desejassem e alguns o fizeram”. No Memorial Allan Institute, da McGill, Cameron conduziu experiências com pacientes psiquiátricos e não devia satisfações éticas a ninguém. Ali, literalmente ele se entregou ao projeto 
de esvaziar ou apagar o cérebro dos seus
pacientes, um protótipo do que ficou
conhecido como técnica de 
brainwhashingA velha e conhecida lavagem cerebral. Tirar tudo de suas cabeças, dessubjetivá-los, para os reconstruir a partir do zero. Choque elétrico, sono induzido e repetição de mensagens gravadas, estas eram algumas das técnicas por ele utilizadas. Militares norte-americanos e de outros países demonstraram grande interesse e acompanharam de perto as pesquisas de Cameron. A CIA levou à prática o trabalho dele, codificado num manual de instruções denominado “KUBARCK”.[5] Tortura de prisioneiros era um dos tópicos. E então choques elétricos, espancamentos, fome, sede, privação de sono, calor ou frio extremos, ameaças. Quanto tempo até que o sujeito desmorone? Entre outras, essa foi a pergunta. A resposta permitiu
apontar os caminhos práticos que
poderiam “quebrar” um prisioneiro,
com que ele deixasse de resistir. Em
conjunto, os achados de Cameron seriam
muito úteis na guerra psicológica que abria
suas primeiras fronteiras. A guerra fria
estava prestes a conhecer novos patamares.[6]

Submeter prisioneiros a maus-tratos não é coisa nova. O novo é o uso racional e
metódico dessa forma de violência e a
possibilidade de ser ensinada. O que se quer é a colaboração da vítima, a
informação, não sua morte. Entretanto,
um prisioneiro pode ser assassinado por meios torpes e, neste caso, não importa a quanto de tortura e a quantas tormentas ele será submetido até que a morte sobrevenha. No genocídio argentino, entre 1976 e 1982, prisioneiros foram enviados aos Centros Clandestinos de Detenção, Tortura e Extermínio, cerca de 300 em todo o país. La Perla, nas cercanias de Córdoba, foi o mais importante deles. Quase todos os sequestrados lá detidos iriam ser mortos, logo não fazia diferença e viessem a colaborar ou não. Assim, desde o momento da detenção eram submetidos a tratamentos degradantes. Todas as mulheres foram sexualmente abusadas ao longo do tempo em que lá estiveram e mesmo alguns homens; todos foram submetidos a excruciantes torturas físicas; choques elétricos e espancamentos se sucediam dia e noite até o dia da batalha final.[7] O objetivo das forças militares argentinas era esse: matar, eliminar, reduzir a escombros aquelas pessoas classificadas como inimigas da pátria. O que acontecia nesses lugares – porque em certa altura toda a gente bem fazia ideia - era mantido apenas em parte silenciado. Informações “vazavam” à sociedade e não raro um corpo mutilado era deixado à mostra em logradouros públicos de grande circulação. O cadáver cumpria sua função de peça de propaganda política. Aquilo era mesmo para ser visto e não para ser ocultado: faremos tremer até os inocentes, diziam. Ao ler as reflexões de Feinmann[8] acerca desse período, recordei que no navio 
negreiro era produzido um choque 
assemelhado. No momento em que o grande tumbeiro levantava âncoras com sua carga humana completa, ensardinhada  nos porões abaixo do convés, um cativo era escolhido pela tripulação, conduzido forçado até o mastro principal, sendo ali amarado e, diante de todos, chicoteado até a morte. Choros, gritos, lamentos, urros, sangue, urina, fezes. Os despojos eram atirados pela amurada e faziam o deleite de tubarões famintos. A cena daquele “desmonte” da negra carne, produzida como um teatro de requintada crueldade, gerava nos circunstantes um estado tal de pavor que garantia a travessia do mar oceano sem maiores transtornos com a disciplina.

Voltemos a Naomi Klein. Não muito longe da McGill, na outra margem do Lago
Michigan, num outro laboratório se
preparavam formas novas de intervenção. Não em indivíduos, mas em coletivos ou na sociedade. Era gente limpa e culta, mais limpa e culta que os auxiliares de Cameron. E não se tratava de choque elétrico nem de fármacos e sim de
economia política. Lá, na Illinois University, pontificava Milton Friedman. Klein o chama de “o outro Dr. Choque”: choque neoliberal, como veio a se chamar décadas mais tarde.

Neoliberalismo ou ultra-liberalismo significa eliminar a esfera pública da vida econômica de uma nação. Por economia entende-se os modos de produzir a vida, todas as formas, incluindo as subjetivas. Pronto, tudo isso virou mercadoria, num estalar de dedos. Tudo isso deve virar mercadoria, sustentava a economia política de Friedman. Só assim haverá felicidade. Se alguns têm muita riqueza e muitos pouca ou nenhuma, isso apenas se deve ao mérito dos primeiros. Ou a acasos genéticos, loterias, como se diz. O caso é como convencer os cidadãos a aceitarem redução de direitos e ganhos, e mesmo a extinção de alguns deles; menor renda, maior jornada, inseguridade social,
precarização, manipulação da comunicação, violência institucional, criminalização étnica, aumento da miséria, é assim que o choque neoliberal de Milton Friedman trabalha. Tem sido assim no mundo globalizado desde algumas décadas. Quer dizer, desde o começo dos anos 1980. De lá para cá, para a maioria do povo as possibilidades de morrer à míngua ou nas mãos de agentes do Estado ou, que seja, sofrer alguma violação aumentaram.

Naomi Klein vai dizer que uma sociedade não aceitaria ser submetida a tais restrições passivamente. E, todavia, se tiver quebrada sua vontade, tais políticas de privatismo maximizado e destituições violentas poderiam ser implementadas. Por isso ela fez comparações entre a quebra da vontade de um sujeito e a quebra da vontade de uma nação, de um povo.

Noemi Klein faz essas comparações entre tortura e economia ultra-neoliberal. São muitas, podemos crer. Em seu livro sobre como nações podem ser “chocadas”, ela diz que isso pode acontecer “por guerras, ataques terroristas, coups d’état desastres naturais”. E são outra vez
“chocadas” por corporações e políticos que
exploram o medo e a desorientação deste
primeiro choque para impulsionar a
“terapia” do choque econômico. E então
as pessoas que ousam resistir a essa
política de choque são, se necessário
“chocadas” pela terceira vez - pela polícia e por soldados, pela prisão e interrogatórios. Ou seja, o estado catártico produzido no indivíduo por ação violenta, também poderá ser produzido nas sociedades, como fenômeno de massa.

Ilustração cruzando as duas datas: 11 de setembro de 1973 e 11 de setembro de 2001
No Chile isso tudo aconteceu mais ou 
menos em simultâneo, já naquele primeiro 
dia. Quarenta anos depois, publicação 
brasileira deu o seguinte destaque: “Vitorioso, Pinochet impôs sua ferrenha ditadura e se vangloriava de controlar até o movimento das folhas (...) Junto a um grupo de discípulos de Milton Friedman, impôs um modelo liberal ao extremo que levou ao lançamento da economia após a privatização de empresas e serviços do Estado”.[9] Tal modelo, ou melhor, projeto, denominava-se El Ladrillo. O Tijolo. O tijolo com o qual se construiria nova e original experiência, todavia de feição familiar: eliminação do controle de preços, venda de empresas estatais, eliminação dos impostos de importação e cortes dos gastos públicos, entre outras medidas. Friedman comemorou tal esfuziante momento e o chamou de “movimento rumo ao livre mercado”.

Já antes Friedman vinha recebendo estudantes estrangeiros em seu laboratório na Illinois University, lugar onde se havia apropriadamente entronizado Alfred Von Hayek, o papa do neoliberalismo. Lá concluíram seus cursos de mestrado e doutorado. Alguns eram brasileiros, entre os quais Paulo Roberto Nunes Guedes, hoje o mais famoso deles. Estudantes estrangeiros da Chicago School of Economics foram estagiar no Chile, para ver na prática como se devia fazer, como se devia acabar com a servidão. Em 1972, ainda no governo Allende, Friedman abrira um programa de formação em “livre mercado” para estudantes de economia chilenos. Os da Universidade Católica foram para lá, depois apelidados “The Chicago Boys”. Saiu deles, naquele longínquo 1973, o primeiro tijolo que décadas depois viria a matar velhos precariamente aposentados.

Ativistas de direitos humanos exibem retratos de pessoas desaparecidas durante o regime militar em manifestação pelo 44º aniversário do golpe liderado por Augusto Pinochet contra o presidente Salvador Allende, em Santiago, no Chile — Foto: Claudio Reyes/AFP
Todos sabem que nenhum outro Estado foi tão extensivamente saqueado quanto foi o Chile na ditadura Pinochet. E claro que este saque só poderia ser feito às custas dos trabalhadores e do povo. Sem parlamento, sem partidos políticos, sem sindicatos, sem assembleias, sem discussão com a sociedade: decidia-se de manhã, botava-se em prática à tarde. Vamos privatizar tudo o que pode ser privado, vamos acabar com o monopólio estatal do cobre, vamos aproveitar que todo mundo está atordoado pra passar a boiada inteira, vamos controlar essa porra toda aí, porra! E vamos vender o Banco do Chile, porra! Deixa cada um se foder do jeito que quiser![10]




[1] Araçatubense aposentado e escritor bissexto.
[2] É farta a literatura sobre esse momento, incluindo relatórios técnicos e ensaios. Julguei de interesse partilhar matérias divulgadas em setembro de 1973 por jornal brasileiro que fez a cobertura do golpe. Confira em https://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/com-palacio-de-la-moneda-cercado-allende-se-suicidou-para-nao-renunciar-9841769. E principalmente aqui:  https://www.ebc.com.br/noticias/40-anos-do-golpe/2013/09/o-dia-final-de-salvador-allende.
[4] The shock doctrine. The rise of disaster capitalism. New York: Metropolitan Books/Henry Holt & Company, 2007. Confira o documentário com o mesmo título. Disponível em https://vimeo.com/26773488.
[5] Kubark Counterintelligence Interrogation. Disponível em      https://nsarchive2.gwu.edu/nsaebb/nsaebb27/docs/doc01.pdf. Confira também https://science.howstuffworks.com/torture-manual1.htm.
[7] Centenas deles foram dopados, acomodados em aviões e atirados vivos no Rio da Prata. Para outras informações sobre os CCDTE confira: http://www.apm.gov.ar/lp/1-la-perla-centro-clandestino-de-detenci%C3%B3n-tortura-y-exterminio
[8] Feinmann, José Pablo. Filosofía y derechos humanos. Buenos Aires: Planeta, 2019.
[10] Anotações da Reunião Ministerial do Governo do Brasil, realizada em 22 de abril de 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TjndWfgiRQQ

Um comentário:

Unknown disse...

Muito importante este texto. Mostra como as práticas de destruição das capacidades de reações individuais e sociais de articulam. Parabéns, vou divilgar+