AGENDA CULTURAL

2.3.12

Navegar é preciso


Hélio Consolaro*

Às vezes, chego a uma conclusão simplória que cada pessoa já nasce pronta. Vejo isso em meus netos. Com menos de um ano de idade, já demonstram gênio, temperamento e como vão enfrentar a vida. É o velho dilema, ainda em discussão, irrigado com muita pesquisa, de genética e meio.

Já estamos descobrindo que genética e meio interagem entre si. Não somos um ente a ser totalmente construído pelo meio, já trazemos uma carga pronta, inclusive psicológica; por outro lado, o meio incorporado, vai mudando a herança biológica.

Como cronista foi caracterizado por Machado de Assis de beija-flor, não há flor (assunto) em que ele não mete o bico, me pus a escrever sobre um assunto bem diferente do meu cotidiano, mas meus 33 leitores saberão me suportar.

As religiões tentam ensinar mecanismos de como o ser humano domina o animal que mora dentro dele. Há teorias que falam que somos feitos por camadas, como somos frutos da evolução, cada bicho tem a sua dentro de nós. O lerdo, certamente, está bem próximo da tartaruga; o briguento, do cachorro, assim por diante.  

O diabo é o bicho que mora dentro da gente. Aquele momento em que a nossa cultura (mundo humano por excelência) é esquecida e partimos para a agressão, deixando os instintos nos dominarem. Somos maus por natureza. Dizem: “o cara foi animalesco”. Aí inventaram a dicotomia corpo/alma, céu/inferno, teoria/gramática. E assim construímos a nossa civilização ocidental.

Às vezes, fico perdido, perdido mesmo. Há muita gente com tantas certezas e eu com milhões de dúvidas. Sinto-me sempre um tripulante de uma embarcação náufraga. Não desejo mudar nada, essa é a nossa natureza, mas esse sentimento de pertencer a um bando sem rumo, perdido na planície me incomoda.

Parece aí que as religiões lançam a tábua da salvação, a idéia de Deus para organizar a nossa cabeça, para que suportemos o peso do mundo. Esse negócio de pensar, ser racional, se colocar como centro do mundo, põe o nosso corpo a serviço do cérebro. A cabeça exerce a ditadura no corpo.        

Então, caro leitor, tudo é uma incógnita. A verdade é relativa, só é absoluta para quem se contentou com a limitação, só nos resta viajar (viver) por esse planeta que, por sua vez, também viaja no espaço sideral. Um corpo vai viajando no outro, e ficamos perdidos como aquela formiga no metrô: sem noção do todo. Quem sou, onde estou, para onde vou?

Se sou parte e não sei qual é o meu todo, deixo a vida me levar, não há como espernear. Com ou sem tábua de salvação, precisamos viver. E que façamos a travessia com dignidade. Mas o que é dignidade? Esse filósofo não se cala em mim.

“Navegar é preciso, viver não é preciso” escreveu Fernando Pessoa. Sendo ateu, espiritualista ou qualquer outra coisa, a participação de cada um por aqui contribui com o todo. “Viver” está ligado à individualidade, “navegar” é a marcha da humanidade. Meus netos adentraram a barcaça da vida. Eu estou quase pulando dela, mas como o mar é grande e o mundo é pequeno, naveguemos. Esperemos a hora, sem desespero.

*Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Atualmente é secretário municipal de Cultura de Araçatuba-SP  




    

5 comentários:

Unknown disse...

Uma dica: o senhor está precisando de um pouquinho de pimenta (sério). Que depressão é essa secretário? Tudo bem...concordo com tudo isso, também sou uma criatura que se pergunta muito,enquanto vejo tantos com resposta pronta e definitiva, verdades empacotadas. Isso me dá uma preguiça...antes me dava raiva, agora tô fugindo de gente absolutista. Leia meu post sobre a importância da pimenta e entenderá o que digo. Sou meio avessa à teoria Zecapagodista: remar é para os fortes, deixar-se levar é para os fracos. rsrsrs

jhamiltonbrito.blogspot.com disse...

Estamos quase chegando no dia do Juízo final e nao conseguiram ainda determinar com exatidão quem disse a frace: Navegar é preciso...Fernando Pessoa ou Pompeu se digladiam pela autoria da frase

Anônimo disse...

A precisão a que Fernando Pessoa se refere está no sentido de exatidão e não de necessitade de algo.
Se você, navegador, se o seu navegar não for preciso, você acabará perdendo a rota. Portanto, tenha sempre uma bússola à mão.
Você precisa da bússola, porque navegar tem que ser preciso, sem falhas.

Hélio Consolaro disse...

Ao anônimo:
Se um texto poético tivesse apenas uma leitura, não seria texto poético, talvez uma dissertação. Além disso, eu posso tirar uma frase de um contexto e pô-la noutro, ganhando nova dimensão.
Obrigado pela leitura.
Abraços
Hélio Consolaro

Anônimo disse...

Que lindo, Hélio!
E coincidiu com o tema do Café Filosófico de hoje.
Parabéns!

Wanilda Borghi