AGENDA CULTURAL

1.9.12

Paixão e sabedoria

Renato Janine Ribeiro* - Revista da Cultura

"Sexo", livro de Flávio Gikovate, traz suas últimas ideias sobre a difícil relação entre a sexualidade e o amor.

Stendhal diz que, para eu me apaixonar, primeiro preciso admirar – geralmente por sua beleza – a outra pessoa. Mas isso não basta. Tenho de acreditar que ela esteja a meu alcance. É isso o que nos preserva de nos apaixonar por Gisele Bündchen ou Cameron Diaz – a percepção, sensata, de que não saberemos conquistá-las. O problema é que esse bom senso anda raro. Nas bancas de jornais, revistas oferecem corpos lindos – geralmente femininos – ou uma vida de alta temperatura passional. Acabamos acreditando na possibilidade de ter acesso a corpos tão belos. Isso traz enorme infelicidade.

Flávio Gikovate estuda os fenômenos do amor há 40 anos. Nesse período, atendeu quase nove mil pacientes. Seu maior mérito foi que, tratando-os, nunca temeu discordar de teorias, por brilhantes que sejam (leia-se: Freud). Quando o criador da psicanálise, ainda hoje a mais influente referência da psicologia, afirma algo que contradiz as evidências empíricas encontradas por Gikovate, este não tem medo de contestar a bibliografia.

Daí a originalidade e importância de uma obra em constante gestação e mudança. Um exemplo: anos atrás, era moda criticar o ficar das jovens gerações, acusando os adolescentes de trocar beijos, carícias sexuais e até fazer sexo com pessoas que mal conheciam. Decadência, não é? Pois Flávio discordou. A própria ambiguidade do ficar, que abrange do selinho até a cama, é uma arma para os adolescentes – como, no passado, seus pais – criarem um mundo autônomo, que os pais não conseguem invadir. A troca de carinhos em lugar público protege os (e as) jovens de um pretendente que se torne agressivo. E o principal: o sexo tornar-se natural reduz um poder enorme que as mulheres tiveram, regulando o desejo dos homens. Portanto, ficar não banaliza o que devia ser precioso, isto é, a intimidade: ficar pode até emancipar.


Não é uma tese que agrade a todos. Desagradará a quem vê, em qualquer manifestação da cultura atual, declínio em face de algo supostamente superior do passado. E incomodará quem só pensa a condição feminina, no passado, como oprimida, esquecendo que oprimidos desenvolveram artifícios para reverter a opressão. Para haver real igualdade entre os sexos, tem de acabar a opressão explícita do homem e a implícita da mulher.

Outra tese difícil, que Gikovate sustenta neste livro, é que sexo e amor são fenômenos não só diferentes, mas antagônicos. O amor aconchega. O sexo instiga. Um acalma, outro excita. O amor sempre é uma relação com o outro, enquanto o sexo é pessoal, visando à autossatisfação. O amor traz paz, o sexo se liga à agressividade. Daí a dificuldade de equilibrá-los.

A paixão é fortemente sexuada. Pode virar amor? Não é fácil, se são fenômenos opostos. Imagino que a maioria das pessoas que procuram atendimento sobre o amor sofra dos efeitos da paixão. Pode ser porque estou apaixonado mas ela não me ama, ou porque ela se enamorou de outro, ou porque me apaixonei e sou casado. A própria palavra paixão designa algo que não controlamos, tanto que se opõe não só à razão, mas à ação: na paixão, somos passivos. Podemos nos sentir fortes, potentes: o fato é que somos passivos. Podemos nos sentir livres, poderosos: mas estamos sob uma possessão.

Receitas para resolver isso? Não há. Em tempos idos, o apaixonado com dinheiro podia manter uma amante. Já a apaixonada sublimava – ou aprendia a trair com cautela. Hoje, os laços, mesmo firmados no altar, são mais frágeis, a paixão irrompe com facilidade, tudo parece possível. Reivindicamos o direito à felicidade e a confundimos com prazer, sexo, paixão. Mas pode ser que o sofrimento num mundo que exalta a paixão seja até maior do que no passado.

Quem espera de Flávio Gikovate – ou de quem quer que seja – soluções perfeitas não vai tê-las. Mas terá, neste livro, em seu programa de rádio ou em seu
site, elementos preciosos para entender o que acontece com seus sentimentos. Nosso tempo está carregado de ilusões. Talvez a contrapartida da ampla liberdade de que desfrutamos hoje, na vida política mas sobretudo na pessoal, seja um leque enorme de fantasias – e de sofrimento. Conhecer-se melhor ajuda a viver. Diante da paixão, é bom cultivar a sabedoria. Concluo com um relato. Anos atrás, numa megalivraria, vi um homem, já meio gordo, olhando revistas masculinas – uma a uma. Hesitou, mas não comprou nenhuma delas. Acabou saindo com uma revista de receitas de mousses. Pensei na sua frustração, porque os doces o afastariam ainda mais daqueles corpos lindos – que, aliás, nunca seriam dele. Mas também pensei na sua sabedoria. A mousse poderia dar-lhe menos prazer, mas este era garantido. Os corpos sarados pelo mix de genética, academia e Photoshop, não. 


*Renato Janine Ribeiro é araçatubense. Já esteve na cidade recentemente, convidado pela Academia Araçatubense de Letras a ministrar palestra em sua sessão solene anual. 

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