AGENDA CULTURAL

13.5.20

Na periferia, ficar na rua sempre significou correr riscos, por José Cícero da Silva

Brasilândia, bairro da cidade de São Paulo

 Irmão, boa noite! Tranquilo? Acabei de saber que a filha de um conhecido morreu por conta do corona. Ele mora no Damasceno. O bagulho tá loco na Brasilândia. A mina tinha 21 anos. Novinha. Esse vírus não só chegou aqui na quebrada como está matando. Dia triste na [zona] norte.

Recebi essa mensagem no dia 16 de abril de uma fonte que mora no Jardim Damasceno, um dos bairros da Brasilândia, periferia norte de São Paulo. Na época, a cidade já era o epicentro da pandemia no país e a Brasilândia começava a liderar o ranking de mortes por Covid-19 entre os distritos paulistanos. O coronavírus se espalhava e causava mortes na periferia – tornando realidade a principal preocupação de moradores, movimentos sociais e lideranças comunitárias desde a chegada do coronavírus ao Brasil.

Em poucos minutos, eu estava em contato com o pai da jovem, que, até então, entendia a morte da filha como negligência da mesma: "É minha filha, mas digo a verdade, ela foi negligente com a própria vida. Ela ficava na rua e, como muitas pessoas daqui, não acreditava que poderia pegar, e pegou coronavírus. Não tivemos o que fazer, foi rápido. É difícil segurar jovem em casa. Perdi minha filha porque ela não quis ficar dentro de casa. É inacreditável.”

Em muitas periferias do Brasil, mais especificamente nas favelas, é quase inviável "ficar em casa", como recomendam os especialistas. Na Favela da Paz, na Brasilândia, onde famílias de seis pessoas vivem em residências pequenas, com dois ou três cômodos, as vielas acabam sendo utilizadas como quintais e espaços de convivência. Não há opção: ou os moradores se aglomeram em casa ou se aglomeram nas ruas, becos e vielas. Como evitar aglomeração no local que tecnicamente é chamado de “aglomerado subnormal”?

Mas em todo o estado a adesão ao isolamento social está baixa, não só nas periferias. Apesar das diferenças em termos de infraestrutura, o mesmo comportamento se repete em bairros ricos. A Praça Pôr do Sol, no Alto de Pinheiros – bairro que tem um dos maiores Índices de Desenvolvimento Humano de São Paulo – foi fechada com tapumes para evitar a frequente aglomeração de pessoas no fim da tarde. Em praças do Morumbi, os ricos utilizam até cadeiras de praia para curtir a tarde entre amigos. Sem contar os que se aglomeram na Avenida Paulista para exigir que o governador e o prefeito afrouxem a quarentena.

Ficar na rua sempre foi considerado arriscado para moradores de periferia, e o coronavírus reforçou isso. Desde pequenos somos advertidos: “Cansei de te falar para não ficar na rua”. “Se estivesse em casa, não tinha acontecido isso”. “Sai da rua. Você não perdeu nada lá”. “A polícia te bateu? Quem mandou ficar na rua?”.

Mesmo diante de ameaças visíveis, tangíveis, instantâneas e reais, a vida exige que os moradores sigam circulando por ruas, becos e vielas, assumindo riscos que vão desde um esculacho da polícia até ser atingido por uma “bala perdida”. O coronavírus é só mais um desses "perigos".

Talvez devido a essa “relação cultural” com a rua, ainda não tenhamos percebido que diante da gravidade da pandemia, se esforçar um pouco mais para ficar dentro de casa é necessário, mesmo com todas as dificuldades. Isso porque o vírus não é tão democrático quanto parece. Para cada morte no bairro rico de Moema, quatro morrem na Brasilândia. 

Um dia após a morte da jovem citada na abertura deste texto, a prefeitura divulgou dados que apontavam que o Morumbi era o bairro com o maior número de casos confirmados: 297 e 7 mortes. Enquanto isso, o distrito da Brasilândia tinha 89 casos e 54 mortes. Ou seja, no Morumbi, de 297 pessoas contaminadas, 290 sobreviveram. Na Brasilândia, de 89 contaminados, só 35 sobreviveram. Mais da metade das pessoas infectadas perderam suas vidas.

Ao circular pela Brasilândia para fazer esta reportagem, fiquei impressionado com a presença massiva das pessoas nas ruas, principalmente onde há concentração de comércios. Nos becos e vielas, também havia rodas de amigos, grupos de jovens bebendo e fumando narguilé, adolescentes andando de bicicleta. Moradores dos grupos de risco fora de casa, sentados nas calçadas, interagindo com outras pessoas sem nenhum tipo de proteção.

Essas cenas cotidianas me colocaram em um dilema: como retratar a realidade sem reforçar a estigmatização de que os moradores de periferia eram culpados pelo aumento de mortes na cidade? Como explicar as dificuldades do isolamento na periferia sem dar a entender que os moradores "não estão nem aí” para a pandemia?

Depois de alguns dias circulando pelos bairros e conversando com pessoas que pegaram a Covid-19, presidentes de associações de moradores, agentes de saúde, jovens, adultos e velhos, notei que há posturas distintas diante da pandemia. Há pessoas que realmente não estão nem aí, ao mesmo tempo em que outras estão extremamente preocupadas e articulam ações para mitigar o impacto da Covid -19 nesses territórios. Há moradores que fazem questão de não sair de casa por dias, enquanto outros evitam ficar dentro da residência.

No limite, a postura da periferia é parecida com a dos bairros mais ricos. O problema é quando o vírus pega. Porque aqui na periferia, ele é muito mais letal.
José Cícero da Silva é fotógrafo, videomaker e repórter da Agência Pública.

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