AGENDA CULTURAL

24.11.20

Merece viver, precisa respirar

 


Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Araçatuba-SP

Antes da morte Beto Freitas, muita gente apanhou já por alguma coisa naquele supermercado. Ou nos supermercados do Brasil. Não morreu ninguém, não foi filmado e a vítima não quis denunciar. Então não existiu o fato.

Pelo assassinato de Beto Freitas, cliente do Carrefour em Porto Alegre-RS, é possível analisar a evolução da redação das notícias. No calor dos fatos, elas são redigidas de um jeito; depois de alguns dias, os textos são mais amenos. 

O repórter, trabalhador de chão de redação, precisa a cada dia buscar detalhes para alimentar a curiosidade do leitor e o caixa da empresa jornalística. 

O chefe de redação de uma empresa jornalística de Porto Alegre ordena ao estagiário ou foca (profissional em início de carreira):

- Preciso de detalhes, busque detalhes!

O jornalista-estudante (estagiário) ou o foca tenta explicar:

- Não há mais novidades. Tudo foi explorado!

Aos gritos, o chefe de redação determina:

- Você não é jornalista, não vai ser um profissional. Se não achar nada, insinue! Revirem a vida dos seguranças, busque a situação da empresa de segurança, veja o vídeo por outro ângulo, descubra se o Beto Freitas era filho adotivo. Se vira! 

Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. O jornalista não escreve o que pensa e quer. Isso se não acontecer o seguinte:

- Você não vai cobrir mais o caso Beto de Freitas, a diretoria do jornal acha que você está muito tendencioso, o Carrefour pode suspender o jornal de sua carteira de anúncios.

As primeiras notícias do fato, pintaram o Beto Freitas como um anjo, só lhe faltaram pôr asas no rapaz. Aí foram descobrindo que não era bem isso, o sujeito não era tão gente boa.

Atualmente, as notícias já estão aliviando as empresas, afinal, elas precisam atenuar as penas na Justiça. Mas os protestos sociais se acumulam, figuras conhecidas exigem rigor, até personalidades internacionais pedem punição severa das empresas envolvidas. O jogo de braço continua. 

Os traíras, aqueles que são contra os direitos humanos, acham que o sujeito era negro, não era tão certinho, precisava apanhar sim senhor e morreu por acaso, um acidente de trabalho. Beto Freitas tinha uma vida que não valia a pena.

Na verdade, aquelas pessoas que não renunciaram à sua humanidade consideram a vida. Não importa se o Beto Freitas era isso ou aquilo, ele era gente, nosso irmão, porque somos filhos do mesmo Deus.

 Vidas pretas importam, e todas as tonalidades também! O outro, independente de seu estilo de vida, também merece viver, precisa respirar. 

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