AGENDA CULTURAL

21.6.17

A ressaca de Gilmar Mendes

Preferências partidárias e atuação política de Gilmar sempre foram notórias e não há questionamentos ou "vigilância" por parte da mídia em relação a isso.

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Tatiana Carlotti - revista Carta Maior

Em 2002, quando Gilmar Mendes foi indicado ao posto de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, o jurista Dalmo Dallari alertou em artigo publicado na Folha:
 
“Se essa indicação vier a ser aprovada pelo Senado, não há exagero em afirmar que estarão correndo sério riscos a proteção dos direitos no Brasil, o combate à corrupção e a própria normalidade constitucional. Por isso é necessário chamar a atenção para alguns fatos graves, a fim de que o povo e a imprensa fiquem vigilantes...”
 
Quinze anos depois, impressiona a atualidade do artigo.
 
Na última quarta-feira (14.06), um pedido de impeachment contra o ministro foi protocolado no STF, por conta da sua atuação partidária no Judiciário. Desta vez, a solicitação teve como base a conversa telefônica, divulgada em maio, entre ele o senador afastado Aécio Neves (PSDB-MG).
 
As preferências partidárias e a atuação política de Gilmar sempre foram notórias e não há questionamentos ou “vigilância” por parte da mídia em relação a isso. Pelo contrário, nos últimos anos, as declarações de Mendes serviram de munição à agenda golpista.
 
Porém, isso pode mudar com a guinada da mídia ao ForaTemer. Nas últimas semanas, o ministro esteve no centro de uma enxurrada de críticas – Globonews à frente – após ter proferido o voto de Minerva que absolveu a chapa Dilma-Temer no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
 
A Folha de S. Paulo, inclusive, divulgou duas reportagens no mínimo inquietantes: “Instituto de Gilmar Mendes recebeu patrocínio de R$ 2,1 milhões da J&F” e Família de Gilmar Mendes fornece gado para a JBS, sobre as relações entre Mendes e os irmãos Batista.
 
O racha no condomínio golpista é notório, o cinismo também.
 
Pedidos de impeachment
 
Alegando “crime de responsabilidade”, o ex-Procurador-Geral da República Cláudio Fontelesprotocolou um pedido de impeachment contra Mendes na última quarta-feira (14.06.). A solicitação tem como base a conversa telefônica, interceptada pela PF, entre Mendes e Aécio Neves.
 
Na gravação, o ministro se compromete a conversar com parlamentares envolvidos na votação da Lei de Abuso de Autoridade, atendendo ao pedido de Aécio. Segundo Fonteles, a conversa evidencia “o exercício pelo ministro de atividades político-partidárias”, “por meio de atos de influências”, persuadindo “parlamentares a votarem a favor de um determinado projeto de lei”.

“É claramente uma atuação política que não condiz com o cargo que ele exerce", complementa o ex-PGR, ao acrescentar que o ministro proferiu julgamento em processos no qual estaria impedido de atuar e que age fora do decoro compatível à condição de ministro da Suprema Corte.
 
Em nota, a assessoria de Mendes alega que, desde 2009, o ministro “sempre defendeu publicamente o projeto de lei de abuso de autoridade, em palestras, seminários, artigos e entrevistas, não havendo, no áudio revelado, nada de diferente de sua atuação pública”. Diz ainda que “os encontros e conversas mantidas pelo ministro Gilmar Mendes são públicos e institucionais”.
 
Esta é a segunda vez que Fonteles protocola um pedido dessa magnitude contra Mendes. O primeiro ocorreu em dezembro de 2016, após o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) arquivar, por conta própria, outros dois pedidos de impeachment contra o ministro que corriam no Senado.
 
Ao analisar o episódio, o jornalista Jânio de Freitas foi taxativo na última quinta-feira: “são inúmeras as provas de conduta imprópria desse ministro que se considera acima de todo regramento. E das maneiras pessoais civilizadas – sobretudo se recomendadas pela ética da magistratura”.
 
Acima do regramento
 
Vale lembrar que, em setembro de 2016, juristas de peso como Celso Antônio Bandeira de Mello, Fábio Konder Comparato, Sérgio Sérvulo da Cunha, Eny Raymundo Moreira, Roberto Amaral e Álvaro Augusto Ribeiro também protocolaram um pedido de impeachment contra Mendes no STF.
 
“No exercício de suas funções judicantes, [Mendes] tem-se mostrado extremamente leniente com relação a casos de interesse do PSDB e de seus filiados, tanto quanto extremamente rigoroso no julgamento de casos de interesse do PT e de seus filiados, não escondendo sua simpatia por aqueles e sua ojeriza por estes”, afirma o documento.
 
Eles citam, inclusive, vários exemplos da atuação político-partidária do ministro. Entre eles, a liminar de Mendes, concedida em outubro de 2002, determinado o arquivamento de dois processos por improbidade administrativa contra o então senador José Serra e os ministros de FHC, Pedro Malan (Fazenda) e Pedro Parente (Casa Civil).
 
Destacam, também, o pedido de vista de Mendes durante a votação do financiamento privado de campanhas eleitorais no STF em 2014. A matéria já contava com maioria dos votos no Plenário (seis contra um) quando a votação foi suspensa e ficou mais de um ano parada nas mãos do ministro.
 
A postura e atuação antipetista de Mendes também foi destacada pelos juristas.
 
Foi dele, por exemplo, a liminar que impediu a posse do ex-presidente Lula na Casa Civil, em março de 2016. Alegando “desvio de finalidade”, Mendes utilizou uma gravação ilegal para justificar sua decisão: a conversa entre os ex-presidentes petistas, obtida por meio de grampos instalados na Presidência da República.
 
“No momento, não é necessário emitir juízo sobre a licitude da gravação em tela. Há confissão sobre a existência e conteúdo da conversa, suficiente para comprovar o fato”, afirmou o ministro.
 
Aliás, de grampo, Gilmar Mendes entende.
 
Em 2008, durante a Operação Satiagraha, após ter concedido dois habeas corpus a Daniel Dantas do grupo Opportunity, o ministro afirmou ter sido grampeado pelos agentes da investigação. A Satiagraha investigava o desvio de verbas públicas cometidos por Dantas que adquiriu participações em várias empresas privatizadas durante o governo Fernando Henrique (1995-2002).
 
Em 2011, a Operação foi anulada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), sob a alegação de que a participação irregular de agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) invalidou provas produzidas por meio de quebra de sigilo telefônico e rastreamento de e-mails.
 
Neste mesmo ano, outro pedido de impeachment foi apresentado contra Mendes no STF, questionando as relações do ministro e de sua esposa com o advogado Sergio Bermudes. O pedido foi protocolado em 2001, pelo advogado Alberto de Oliveira Piovesan que alegava suposto recebimento de benesses de advogados por Mendes, colocando em dúvida a isenção do ministro na Suprema Corte.
 
A solicitação foi negada e arquivada pelo STF.
 
Voto de Minerva
 
Um dos ministros mais midiáticos do STF, a atuação partidária de Mendes e seus pitacos nas searas política e econômica do país foram incensados de forma positiva pelo aparato midiático do golpe. A reabertura do processo contra a chapa Dilma-Temer, em agosto de 2016, ápice do golpe, é um exemplo crasso.
 
Naquele momento, Mendes reabria o processo solicitado pelo então senador Aécio Neves, candidato derrotado nas urnas, que pressionava pelo terceiro turno no país. Sobre o pedido, Mendes afirmava:
 
“Diante de sérios indícios de conduta com viés também eleitoral, reforçados pelo noticiário diário da imprensa sobre os referidos fatos” negar a abertura do processo significaria fazer da Justiça Eleitoral “um órgão meramente cartorário”.
 
Dez meses depois, afastada a presidenta Dilma Rousseff e o PT do governo, o ministro ponderou sobre o mesmo processo:
 
“Isto não é uma ação de reintegração de posse. Não é uma ação de responsabilidade civil. Estamos tratando de uma ação especial, especialíssima, quando se trata de presidente da república, que é chefe de Estado e chefe de governo”. 
 
“A cassação de mandato deve ocorrer em situações inequívocas” e “não se substitui um presidente da República a toda hora, ainda que se queira”, complementou Mendes. O mesmo Mendes que durante a votação do impeachment não só criticou a manutenção dos direitos da ex-presidenta Dilma, como considerou  o processo “exageradamente regulado pelo Supremo Tribunal Federal”.
 
Vão-se os anéis...
 
O antipetismo de Mendes não é novidade, tampouco sua defesa da agenda de austeridade no país. Nestes pontos, aliás, ministro e empresas de comunicação estão de pleno acordo. A diferença reside, justamente, em como assegurar a imposição do estado mínimo neste momento, em meio à forte reação popular.
 
Mendes permanece na defesa do governo golpista. A mídia, por sua vez, abraça o ForaTemer, aposta na criminalização da política e no discurso da “anticorrupção”, enquanto seus heróis de outrora caem em desgraça. “Vão-se os anéis e ficam os dedos”. O comportamento das estrelas globais após a gravação de Aécio Neves é sintomático: apagam-se as fotos.
 
Na última quarta-feira (14.06), o jornalão da família Frias trouxe uma capa com duas chamadas impensáveis meses atrás: “STF deve julgar pedido de prisão de Aécio no dia 20”, com uma foto do senador afastado e “Instituto de Gilmar Mendes recebeu patrocínio de R$ 2,1 milhões da J&F”.
 
Segundo a Folha, a holding J&F, que controla as empresas dos irmãos Batista, repassou R$ 2,1 milhões, ao longo de dois anos, para o Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) do qual Mendes é sócio. A soma teria sido destinada à execução de cinco eventos e a um grupo de estudos em Direito do Trabalho.
 
Vale lembrar que o IDP é o mesmo instituto que, em  29 de março de 2016, reuniu a camarilha golpista em Portugal, em pleno furor do impeachment. Estavam lá, entre outros, Michel Temer, Aécio Neves, José Serra, o ministro do TCU Aroldo Cedraz. Todos, sem exceção, citados por delatores na Lava-Jato. O encontro, inclusive, foi financiado pela FIESP e pela Confederação Nacional da Indústria (CNI).
 
Enquanto o pato inflável atiçava os ânimos na Av. Paulista, a mídia cobria o evento com naturalidade. O Estadão informava: Instituto de Gilmar Mendes reúne Temer e líderes do impeachment em Portugal. Na Folha: Seminário em Portugal é acadêmico, não político, diz Gilmar Mendes. Em O Globo, Ricardo Noblat ponderava: “Ao que tudo indica, nada haverá de suspeito no encontro de Temer com Mendes, agendado desde meados do ano passado”.
 
Agora, porém, a Folha chama atenção para um outro evento em Portugal, ocorrido em abril deste ano, dias após os executivos da JBS terem firmado o acordo de delação com o MPF, ou seja, depois deles terem assumido a execução de crimes pela empresa.
 
Passava boi, passava boiada...
 
O IDP garante ter devolvido R$ 650 mil do valor recebido da J&F, após as delações virem à tona. Até então “a conduta das empresas do grupo J&F era considerada exemplar”, apontou o Instituto. Mendes, por sua vez, disse nunca ter administrado o IDP, portanto, não teria como se “manifestar sobre questões relativas à administração do instituto”.
 
reportagem também destaca que a delação dos irmãos Batista, homologada pelo ministro Edson Fachin (STF), parou na Justiça devido ao questionamento do governador tucano Reinaldo Azambuja, do Mato Grosso do Sul, sobre a relatoria do processo. Frisando que “o colegiado do qual Gilmar faz parte terá que tomar decisão sobre a delação” e que “não há ainda data para esse julgamento”.
 
Segundo os delatores da JBS, entre 2007 e 2016, Azambuja e o ex-governador André Puccineli, ambos tucanos, embolsaram R$ 150 milhões em troca de benefícios fiscais às empresas da J&F.
 
Outro aspecto explorado é a relação entre a família de Mendes e os donos da JBS. Em Família de Gilmar Mendes fornece gado para a JBS, o mesmo jornal destacava que os familiares de Mendes vendem gado ao frigorífico dos irmãos Batista. Questionadose isso, por si só, não o impediria de participar das votações relacionadas à empresa, Mendes respondeu:
 
“Não. Por quê? As causas de impedimento ou suspeição são estritas. [Se fosse assim] Eu não poderia julgar causas da Folha, Carrefour, Mercedez-Bens, Saraiva”, respondeu o ministro, referindo-se a empresas das quais é cliente.
 
Da mesma forma, Mendes não viu nenhum problema em viajar para Portugal, no avião presidencial, junto com Temer, apesar dele ser o juiz em um processo que definiria, meses depois, a continuidade ou não do presidente ilegítimo no governo.
 
Sobre o episódio, o ministro afirmou: “não vou nem falar das relações que mantenho com o presidente Temer, que são as mesmas que mantive, por exemplo, com o presidente Lula”.
 
Não é a primeira vez que surgem denúncias sobre o IDP. Em 2014, o jornal GGNcolocava em suspeita um contrato, sem licitação, celebrado pelo Tribunal de Justiça da Bahia com o Instituto de R$ 13 milhões. Em 2012, a revista Carta Capitalcontava sobre um processo contra Mendes, promovido pelo ex-procurador-geral da República Inocêncio Mártires Coelho.
 
Ex-sócio fundador do IDP, Coelho acusava Mendes de fazer retiradas ilegais do Instituto. O processo tramitou em segredo de Justiça e foi encerrado, segundo a reportagem, ao custo de R$ 8 milhões. Em nota, Mendes afirmou ter sanado as irregularidades apontadas em auditoria e quitado a dívida.
 
A mesma Carta Capital, em 2008, trazia outra reportagem sobresupostas manobras e tráfico de influência na obtenção de contratos sem licitação, que somariam R$ 2,4 milhões. Processada, a revista foi condenada pelo STJ a pagar R$ 90 mil por danos à credibilidade do Instituto.
 
O fato é que o alerta do jurista Dalmo Dallari permanece mais atual do que nunca. Ao clamar a vigilância da sociedade e da mídia, naquele artigo de 2002, ele também lembrava que:
 
“Nenhum Estado moderno pode ser considerado democrático e civilizado se não tiver um Poder Judiciário independente e imparcial, que tome por parâmetro máximo a Constituição e que tenha condições efetivas para impedir arbitrariedades e corrupção, assegurando, desse modo, os direitos consagrados nos dispositivos constitucionais”.

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